Em breves linhas, deixo aqui o perfil do nosso interlocutor deste prazeirento bate-papo ocorrido em Lisboa, no Solar dos Galegos, ao Largo da Santa Casa da Misericórdia, ao cair da tarde de um dia de certa pressa e alguma ânsia no pacote, pois o Luís Carlos estava aviado e de malas feitas para mais um regresso às singulares praias do Índico. Ele mesmo que é natural de Maputo onde nasceu em 1953. Jornalista, guionista, cronista e autor de uma reconhecida obra poética.
Além de poeta (Monção, A Inadiável viagem, Lindemburgo Blues, Pneuma, entre outros…), sempre colaborou na imprensa moçambicana e portuguesa (A voz de Moçambique, A tribuna, Kuxa Kanema, Publico, Jornal de Letras) e foi funcionário do Instituto de Cinema e da Agência de Informação de Moçambique. Foi coordenador da Gazeta de Artes e Letras da revista Tempo em 1984/86, logo após ter fixado residência em Portugal onde se aventurou na escrita dramática tendo assinado algumas peças. Consultor para a lusofonia no já extinto programa ACONTECE, e comentador na RDP-África. Recebeu, em 1995, o Prémio Nacional de Poesia de Moçambique.
Eis então a amena e reg(r)ada conversa mantida, entre nós, ao sabor de um frito chouricinho de vinho e outros entretantos secretos …de trazer água na boca de quem, com certeza, se vai deliciar com o simples papo cujo registo transcrevo:
L.F. – Dada a tua experiência e os tempos de tarimba jornalística, peço que comeces por fazer uma distinção entre o jornalismo e a literatura. Entre a escrita jornalística e a escrita literária…
L.C.P. – Há uma fronteira entre a literatura pura e dura (e assim posso exprimir-me!) e a escrita jornalística. Sem dúvidas! O jornalismo vive de alguma contingência, mas eu estou convencido que o grande jornalismo comporta, implica e contempla também uma dimensão literária.
Lembro-me daquilo que é, digamos, a obra maior do trabalho jornalístico que é a reportagem. A reportagem que é de uma área próxima de nós que usamos uma língua neolatina que é o português. A reportagem de Gabriel García Márquez, por exemplo, com o “Relato do Naufrágio“ que é uma grande reportagem, antes dele ser o escritor e o contista que conhecemos. Faz ali também literatura, portanto, para um verdadeiro jornalismo… mesmo a notícia que obedece às regras de Quintilhano, do lide jornalístico, já implica uma grande preocupação de rigor de texto que, não sendo literatura no sentido de criação metafórica com outro tipo de dimensões e de liberdades, já implica uma preocupação com a linguagem a que a literatura também está obrigada, portanto, havendo fronteiras, são fronteiras que se diluem.
Outro género jornalístico que todos conhecemos de grandes autores é a crónica. Basta citar em termos angolanos um Ernesto Lara filho, e em termos brasileiros basta citar Rúben Braga, Carlos Drummond de Andrade e tantos outros… e a crónica que é vista como um género menor é um género literário que é visto, simultaneamente, nas circunstâncias de jornal, mas que é também literatura. Portanto, eu penso que o verdadeiro e grande jornalista tem também dentro de si preocupações literárias, e não me esqueço daquilo que Ernest Hemingway disse uma vez quando trabalhou, em miúdo, como repórter no Kansas City Star, a respeito das 110 regras do estilo desse jornal que foram, para ele, a sua aprendizagem do escritor que veio a ser.
L.F. – Agora vamos falar um bocadinho dos teus primeiros contactos com a literatura e com os escritores angolanos…
L.C.P. – São antigos, como é óbvio, e inclui obviamente a poesia de Agostinho Neto concomitantemente com a descoberta da poesia de José Craveirinha, do Rui Nogar e de tantos outros. O contacto com os cadernos IMBONDEIRO e CAPRICÓRNIO, Luandino Vieira… depois a geração que se revela com Pepetela e Manuel Rui, e depois a geração dos mais novos onde estás tu também. Aqueles cadernos que se publicaram em Angola do Geraldo Bessa Victor que, apesar de um certo formalismo do ponto de vista ideológico (mas não era isso o que me importava!), na altura, era o que mais importava em conhecer.
Essa relação existe e percebe-se que sendo de países com óbvias diferenças, e isso é normal e natural, havia pontos de contacto que continuam até hoje e, portanto, temos vivências que, não sendo iguais, são parecidas e, depois, escrevendo em português, apesar de termos outras línguas nos nossos países… escrevendo maioritariamente em português e fazendo cada um de nós as suas experiências em português, não deixa de se perceber correlações que existam e universos que sejam próximos. Imaginários e problemáticas culturais e de buscas identitárias e de afirmações.
Estou-me a lembrar de um dos livros que me deu mais gozo de ler e que é uma verdadeira obra-prima da literatura angolana que é o MESTRE TAMODA e, num outro registo, o QUEM ME DERA SER ONDA do Manuel Rui. Isso para eu referir a pessoas que já pertencem a uma espécie de cânone literário angolano.
E não me é necessário referir às gerações mais novas onde estás tu e o controverso Agualusa ou seja lá quem for… e eu aí não tenho medo das palavras, porque acho que um escritor é um escritor, e as outras dimensões são outras dimensões e isso é o que é interessante e o que faz a dinâmica de uma literatura. E nesse sentido, Angola tem muitos nomes para apresentar e já não preciso estar aqui a fazer a História da literatura angolana, indo até lá mais para atrás.
L.F. – Já agora, podes referir-te com maior incidência à geração de 70 que é mais ou menos a tua?
L.C.P. – Eu ia chegar lá começando pelo David Mestre que, para além de um grande amigo, é uma figura fundamental na renovação da poesia angolana e na exigência, e no rigor da crítica em Angola, e na divulgação dos autores angolanos também. David é uma figura maior com Rui Duarte de Carvalho e mais um ou outro, pois, no âmbito da poesia, não são assim tantos os que conheço.
Tenho até uma particularidade interessante com o David Mestre. Eu conheci o David, sendo eu um garoto que estava a trabalhar na VOZ DE MOÇAMBIQUE, quando o Eugênio Lisboa entra pela redacção e diz que tinha acabado de receber uma carta, de um presídio de Luanda, de um jovem poeta angolano que queria entrar em correspondência com ele e que era o David. O Lisboa começou a falar connosco sem nos revelar o conteúdo da carta – que era pessoal –, mas começou a falar do poeta que era jovem e com quem começou imediatamente a corresponder-se, pelo que penso haver um acervo guardado sobre isso e espero que esteja bem guardado por quem o tem. Daí para frente, dá-se a independência, e é o António Ole que uma vez vai a Moçambique e leva-me autografado o livro DO CANTO À IDADE do David. Foi uma grande emoção para mim que depois vim a conhecê-lo já aqui em Portugal onde tivemos um convívio de compinchas mesmo!
L.F. – Agora quero ouvir-te dissertar sobre algumas similitudes entre as nossas literaturas…
L.C.P. – Eu julgo que existem, sendo que Angola tem mais desenvolvimento. Há mais desenvolvimento mesmo no sentido da prosa. Não é aquela velha coisa clássica que chateia um bocadinho quando se diz que Moçambique tem poetas e Angola tem prosadores. Acho isso assim um bocado com pouco rigor.
Há uma mesma circunstância histórica de afirmação identitária, de combate cultural, sendo que aí Angola antecipa-se. O «Movimento Vamos Descobrir Angola» é anterior ao que está a acontecer em Moçambique nessa altura. Moçambique só surge mais tarde, tirando «O Brado Africano», mas este é um período anterior que Mário Pinto de Andrade chamou “o período dos protonacionalistas”. Moçambique tem nomes que só se começam a revelar no princípio da década de 50 em que aparecem nomes como o de uma Noémia de Sousa, José Craveirinha, Virgílio de Lemos e Lilinho Micaia, que era um dos pseudónimos do Marcelino dos Santos, e Angola já tinha uma literatura que vinha lá de trás desde os finais do século XIX como muito bem sabemos.
Em Moçambique ainda há pesquisas à volta disso e, às vezes, lá vamos descobrindo um ou outro nome. Todos aqueles nomes, sobretudo na prosa e também na poesia angolana, eram de uma dimensão de preocupações e até de afirmação dentro da Língua Portuguesa, com o mesmo tipo de pulsão e de necessidades de invenção identitária e de posicionamento político e cultural. E penso que ambos os países não deixaram de ter sobre isso a influência do Brasil e até do anterior movimento literário brasileiro com Graciliano Ramos. As similitudes existem e são todas! Depois há as particularidades, obviamente, de cada um dos nossos países, sobretudo por causa das línguas nacionais.
Angola, particularmente, faz um registo, sobretudo na poesia, de retradução da oralidade ou da oratura num sentido muito mais consequente e com mais preocupação do que Moçambique tem feito até agora.
Moçambique, principalmente na área da poesia, ligou-se imediatamente a preocupações mais cosmopolitas. Nós não temos um Rui Duarte de Carvalho a fazer a poesia trovadoresca dos vários grupos nacionais que o país tem – prefiro a expressão grupos nacionais! –, e que Angola faz. Não temos o que a Ana Paula Tavares faz e tu mesmo também o fazes… e outros mais provavelmente o fazem.
Neste aspecto, Moçambique integra isso doutra maneira. Há ali um outro jogo de combinação poética diferente dessa retradução aproximada da tradição oral que os poetas fazem. Moçambique não tem um Óscar Ribas, por exemplo, na área do folclore, que é um termo um bocadinho pejorativo para mim… mas pronto!
Moçambique não vai pela via dessa investigação profunda dos chamados usos e costumes, que é uma expressão também horrível… mas acabamos sempre por recorrer a estes termos e expressões que não nos servem!
Moçambique tem algumas coisas, mas Angola, nesse aspecto, está muito mais desenvolvida. Isso é uma pura e grande verdade.
L.F. – Em tempos, houve já muitos mais contactos pessoais e até institucionais. Podemos falar agora de uma hipótese de saída desta «suposta» crise de relacionamentos político-cultural entre nós, para o bem da posteridade ou em benefício das novas gerações…
L.C.P. – Tens toda a razão e, da maneira como tens falado até noutras ocasiões, tenho a certeza de que também estás de acordo comigo e que também criticas esta espécie de virar de costas que não é bem um virar de costas. É que isso não pode ser. Não pode nem deve acontecer, até porque isso é um absurdo, porque, historicamente, todos sabemos que, desde o processo da luta de libertação, que essas ligações todas existiram, e as figuras da literatura angolana e moçambicana, não só as que estiveram directamente ligadas à luta, mas também as que tinham uma atitude progressista e nacionalista, conheciam-se e são amigos e são irmãos até hoje. Irmãos amigos do peito como o António Jacinto, o Marcelino dos Santos, Agostinho Neto e todos outros doutras e mais recentes gerações. E todos são nomes da historicidade das nossas literaturas, povos e países.
Chegou a hora da construção da nação, e é verdade que houve vicissitudes terríveis e, em Angola, ainda piores do que em Moçambique. As chamadas guerras civis. Isso atrofiou um bocadinho de tudo. Hoje vive-se um momento de mais afirmação que considero que é necessário para que haja mais posicionamento, para que não se esqueça a dimensão dessa ligação, porque há uma posição estratégica para todos nós que passa pelo conhecimento mútuo das nossas literaturas e culturas, pois se enriquecem mutuamente, e depois porque somos países de Língua Portuguesa, e isso é um dado que deve ser potenciado a todos os níveis.
Ainda agora, uma revista canadiana que é a MONOCLE trazia um grande dossier sobre a lusofonia (que é outro termo que eu também não gosto!), falando sobre a importância estratégica, económica, política e cultural da Língua Portuguesa. Não é nada encomendado por alguém. É simplesmente a apreciação deles e a investigação dos canadianos e de quem para lá escreve em relação a isso.
O que é preciso é saber que no meio de tudo isso há preocupações de desenvolvimento. Há vicissitudes políticas. Há o que se queira… há a construção de um estado nacional, mas a dimensão cultural e estes elos não se podem perder, e tem que haver uma materialização concreta – em formas concretas – de acontecimentos, como festivais literários e residências literárias em Luanda ou em Maputo, ou noutras cidades, porque isso não pode acontecer só nas capitais. Tem de acontecer a circulação do livro. Os Ministérios da Cultura têm de pensar na circulação do livro entre nós. Não tenho nada contra Lisboa, mas não é preciso passar por Lisboa para que um livro de Luanda chegue e possa ser lido em Maputo. Hoje isso não faz mais sentido. Até temos voos directos.
Porque é que o livro que sai de Luanda passa por Lisboa para chegar a Maputo? Tem de haver mais convívio e uma visão estratégica para isso, pois se há dinheiro para tantas outras coisas – e algumas delas até são mesmo inúteis! –, tem que haver dinheiro para a cultura, porque a área da cultura é fundamental. É o que perdura. É o que fica. É claro que, se a pessoa não tiver pão ou mandioca para comer, ninguém vai pensar só em poesia, sem dúvidas. Mas todos nós, juntos, fizemos esta dimensão cultural, identitária, imaginada ou não, mas vivenciada e até de linguagens. Esta gramática da criação é o que nos constitui e legitima, e é o que permanece. O resto é a poética, pois segundo o poeta alemão Holderlin, «o que permanece os poetas o edificam». Isso é fundamental porque países sem essa dimensão e sem essa circulação universalista, africana e, no nosso caso de países irmãos que somos, deve acontecer sem clichés e deve ser uma preocupação política com visão cultural dos nossos governos e de nós escritores, com as associações, com a dinâmica da sociedade civil e com as editoras e outros interessados, pressionando os governos.