Evangelho Bantu: o evangelho que encanta os bantu depois da intimidade


Kalunga é pseudónimo que assina o escritor de vários prémios brasileiros, João Fernando André, produto da faculdade de Letras e de pesquisas individuais. É crítico literário, contista, cronista e professor. Se bem me prestaram a atenção, não ainda evoquei Kalunga ser poeta, embora o nome kalunga, por si só, já nos remeta à poesia. Vamos saber o que nasceu da sua psique e dos seus dedos. Avanço afirmando que Kalunga é um poeta a construir-se na Poesia Angolana.

“Evangelho bantu” é a obra a merecer os nossos estudos para um discurso crítico-literário com todos os métodos das demonstrações vinculadas no âmbito do materialismo filosófico. Uma obra que nasce de um grande projecto da editora “Perfil Criativo” ou “Alende”, Literatura de Bolso. A obra mereceu a apresentação, como baptismo da obra e do autor, do escritor de renome J.A.S Lopito Feijó K., na União dos Escritores Angolanos.

Começamos pelo título da obra que convida para uma discussão académico-científica­ por os dois lexemas, Evangelho e Bantu, possuírem origens e espaços distintos (Evangelho – Europa; Bantu – África) e divergirem na aplicação a partir do título da obra. A palavra “evangelho” remete-nos a “boa nova, ao que se leva para transmitir coisas sagradas, o que salva da escuridão para clareza”, tudo na Filosofia Religiosa Cristã. Ao passo que “Bantu”, plural de “ntu”, significa em português “as pessoas”, embora o primeiro valor de caracterização seja da língua; também nos remete a todos traços culturais africanos, nesse caso “bantu” significa pessoas com os mesmos valores culturais na língua, em primeiro lugar, como noutros traços culturais africanos. A grande confusão parte de que o lexema “evangelho” se senta no invisível, ao passo que “bantu”, no visível, ou seja, na natureza, quanto às suas práticas. É como se “bantu” visse “evangelho” como um  outro deus que retira as tradições do povo daquele, e este visse aquele como cego. E para aquele perder a cegueira tenha de acreditar neste.

O título “Evangelho Bantu” é, sim, poético, embora não haja uma autêntica conversação exacta com as partes que o constitui como poemário, porque, por si, nos remete às várias interpretações.

A obra é construída numa trilogia: Amar; Manifesto; e Evangelho Bantu. Não reúne harmonia entre os textos. Justifica-se por não houver um denominador comum de significação entre os textos. As obras totalmente conseguidas e já conhecidas, não que esta não seja, por ser particularidade do autor, reúnem paradigmas finalizadas, podendo não possuir um único pensamento, mas tendo a certeza do que a obra quer realmente transmitir. 

Quanto ao espaço estético, o escritor procura trazer com os textos um meio sociocultural e político que vemos junto dos nossos problemas amorosos e outras infâncias dentro dos adultos. É isso que, em alguns textos, chega a definir a obra para merecer um discurso técnico-literário. 

O primeiro capítulo apresenta textos que evocam a mulher no âmbito da simples intimidade de um adolescente, fazendo comparações como se tivesse nas cantigas de amor e apresentando as lutas do autor, como se pode confirmar na voz poética do texto “Sugestão de Epitáfio” (p. 14):


Amei o mundo na plenitude

me dediquei à literatura

vivi aventuras,

tive alegrias e tristezas

enfim, fui aquilo que pude ser


No segundo capítulo, nomeado de “Manifesto”, levanta um grande tema, A LIBERDADE LITERÁRIA, tal como introduz o capítulo com um dístico de João Melo: “O escritor deve ter a liberdade de escrever / sobre tudo e da maneira entender”. Abrindo parênteses nesse pensar quanto à liberdade, gostava de afirmar que a liberdade tem regras, embora subjectivas, mas tem, e tudo para se distanciar da libertinagem. E é este espaço onde o autor se define num experimentalista. Levanta-se neste capítulo a mentira dos políticos ao povo, e basta olhar ao Terceiro Manifesto, que nos leva às mentiras nuas nas palavras evocadas pelo eu lírico:


Política (mente)

não há correcto

nem reUnião


Os problemas causados pelos políticos, já citados anteriormente, também podemos ver nos manifestos IV, V e VI, embora não seja comum, na obra em trabalho, os significados possuirem paradigmas semelhantes, e isso não implica fragilidade. Ainda no mesmo manifesto, vê-se um sujeito poético que pede para que sejamos mais nós, ou seja, mais africanos, apesar de que muitos entendam que para se ser mais africano é necessário ter de quase tudo dos nossos ancestrais, que é impossível, tal como afirmei uma vez: “que nós somos bantu e mais alguma coisa”. Também registámos uma voz poética que justifica o porquê pelo qual Kalunga escreve e para quem escreve, embora não ainda tenha atingido o “orgasmo poético”, por ainda ser missão dos que escrevem “ir escrevendo”:


“Escrevo amor

escrevo sofrimento

escrevo magia

imaculas”


Já no último capítulo, Evangelho Bantu, que dá título à obra, denota-se um espaço estético de vários temas. Procura o escritor, através das vozes poéticas nos textos, afirmar que tudo tenha começado em África e com os africanos, que antes de nos trazerem coisas que se achavam, a olhos de muitos, serem de tão importante ou personalizadas para etiquetas, nós já tínhamos as nossas coisas e bem boas e já era a nossa forma de desenhar a filha Elisa antes de Monalisa, que se veja:


Antes de bi toque


kizakas

menguelekas 

calulu já havia

(…)

Antes de Monalisa

já desenhávamos mona Elisa”


A voz poética do texto “Batalha do Big Bang” remete-nos às guerras que ocorrem nas nossas cidades, onde as mulheres prostitutas acabam mesmo por serem fogos a queimarem os homens poderosos; fala-se daquelas mulheres com visões ao certo de que terminam ricas, principalmente no nosso país, como muitas outras mulheres, embora, com o tal arresto, tenham ficado ou estão a ficar ricas por ontem tiverem a inteligência de perceber que, um dia, os homens dos quais elas retiram o capital para seus sustentos e outros afazeres terminariam mal. Ainda neste capítulo, dá-se espaço ao eu lírico valorizar as figuras africanas da negritude, das resistências e outras figuras. Este, a ser o último poema, também nos traz os segredos de uma África que temos, tudo porque os países do primeiro mundo, se assim podemos chamar, tais como França, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos de América e outros, fazem de África a origem dos seus pratos por cima da mesa e ao mesmo tempo sanita.

O escritor, tecnicamente, distancia-se da construção poética nalgumas vezes por motivos muito simples, pelo facto de que a poesia, para se diferenciar da prosa, tem as suas regras de construção, ou seja, constitui o seu espaço de conforto. Sabemos nós de que a sintaxe da poesia é muito diferente da prosa, e foi nesta obra um dos elementos que mais se atropelou: conectores nos versos e em abundância, fazendo os versos totalmente prosaicos, como se pode ver no “Manifesto VII”, um texto autêntico para uma boa crónica (ou talvez cantiga de escárnio).

É preciso ter cuidado quando se escreve. A emoção é uma sensação que faz um homem grande ser pequeno e fá-lo fazer à toa. Nós podemos escrever sobre os nossos amores, mas que se ficcione a filosofar até chegar ao ápice da poesia. O paradigma da poesia deve, aos olhos de Maestro (2017), e eu estou totalmente de acordo, chegar ao valor político, cultural, social, económico, filosófico, enfim, desde que haja maturidade de despertar à inconsciência do indivíduo e do povo em geral na técnica.

 Não pode um crítico arranjar a mensagem da obra, tanto é que Luísa Fresta, uma pessoa que admiro muito, erraria no Posfácio quando vem dizer que há erotismo nesta obra. Temos de ter em conta de que o erotismo se fundamenta em Eros, uma rainha que comportava à sua volta tudo que excitava, através da linguagem que os símbolos aproximavam à intimidade sexual, e não por palavas simples de amor. Não há significado erótico ao escrever “És minha deusa, és minha flor”; há outros dizeres, aqui afirmados, que eu seja percebido.

Não teríamos de abrir erros por nós estarmos na Literatura, mas pode ser mais uma proposta do autor. Porém, uma coisa seria mesmo a intertextualidade e outra seria plagiar na real actividade sobre. Seria o que se percebe quando o autor não referencia o verso de Agostinho Neto a baixo, um verso muito conhecido. Possível maneira seria, com criatividade, criar com outros sinais uma nova forma de referenciar. Quase todos leitores conhecem essa passagem e outras:

Já não espero, sou aquele por quem se espera” (Agostinho Neto)

Regista, a obra, vários usos que se podem registar com frequência no Movimento Literário Litteragris e muitos dos outros escritores nacionais. Reforço a dizer que não sejam elementos deste movimento, mas o que de muito se adopta quando escrevem poesia: a crase induzida, desmistificação, os títulos no final do texto (original do movimento), poesia concreta, embora com algumas lâminas em vários textos, e ainda o encavalgamento de João Tala, às vezes poético.

 Para terminar, a editora Alende ou Perfil criativo, pareceu-me ter mais preocupação nos arranjos editoriais, não no trabalho técnico e científico-literário­, porque um reparo a obra merecia, não que não tenha, mas que retirassem as pequenas falhas que a mesma possui. É preciso parar para um futuro definir: qualidade ou fragilidade? Sempre viver ou morrer de imediato? AGORA, SIM, PODEMOS AFIRMAR CATEGORICAMENTE KALUNGA É UM POETA.

Referência bibligráfica

Maestro, J. G. (2017). Crítica da Razão Literária: O Materialismo Filosófico como Teoria, Crítica e Dialéctica da Literatura, 3º vol. Academia Editorial de Hispanismo.