Galeria a céu aberto: Um Olhar Sobre o Grafite na Urbe Luandense

Não faremos neste texto uma tentativa de construção histórica linear da arte urbana em Luanda, mais especificamente do grafite. Pensamos que a essência da narrativa historiográfica artística assentaria suas bases em questões estéticas, filosóficas, culturais, sociológicas, antropológicas, históricas, epistemológicas e metodológicas, o que não temos por falta de bibliografia (produção e divulgação) e uma sistematização de tais conhecimentos. Assim, o presente texto é uma tentativa de mapeamento dos principais espaços e sítios onde a arte urbana luandense se apresenta com maior força, especificamente o grafite. A ausência de material sistematizado dificulta imenso este ensejo.

Vale dizer que estamos em presença de um objecto de estudo bastante fértil e virgem, dado a falta de pesquisas e produção artística. 

Tags que desenham um contexto e um possível conceito 

Na década de 1960, a arte nos mais importantes centros artísticos e culturais ocidentais assiste grandes transformações. Movimentos como o Dadaísmo, mais propriamente com Marcel Duchamp, viria a ser uma das grandes influências nesse processo. A arte, por meio destes, fragmenta-se em termos de materiais, linguagens, meios, ideias, valores, etc. Há um total rompimento com a tradição dos paradigmas da História da Arte, em que o “valor” é substituído por uma lógica onde a “Ideia” é a regra do jogo. Além da introdução de “materiais extra-artísticos”, Duchamp cunha com suas ideias uma lógica, onde o lugar de exposição faz dos objectos obras de arte (Cauquelin, 2010). A influência do Dadaísmo diluiu convenções e padrões que, por longos séculos, vinham determinando o que era ou não obra de arte. Sua força originou movimentos como a Arte conceptual, o Minimalismo e a Arte Pop.

 Todas estas mudanças em volta da arte como sistema acentuam-se no princípio dos anos de 1980 com a Arte Pop, onde artistas se apropriam de outros espaços, fora da galeria, assistindo-se colaborações entre artistas e arquitectos no intuito de intervir e transformar visualmente os espaços urbanos (Oliveira, 2013). Artistas como Andy Warhol, transformaram personagens da história, celebridades, ícones de consumo em temas muito vinculados ao quotidiano e à cultura de massa. Nova York será neste contexto o epicentro destas manifestações que buscam novas formas de comunicação cujas linguagens são codificadas. Bansky e Jean Michel Basquiat são artistas que se viram eternizados na história da arte, exercendo grande influência em artistas do mundo inteiro, e sobre artistas de comunidades negras marginalizadas. 

A Arte Urbana (Street Art) apresenta-se como um espaço de disputa visual, pois nestes confluem imagens de várias manifestações, procurando mecanismos de demarcação de espaços para se afirmarem. Assim, nos espaços urbanos decorrem manifestações que vão das artes plásticas (pintura mural, grafite, esculturas urbanísticas, etc.), Hip-hop (música, dança, skate, etc.) e artes de acção processual e efémeras. 

Mais precisamente, arte urbana diria respeito, então, a toda uma linhagem que se desenvolveu a partir da pichação e do grafite, estas duas modalidades cujo histórico de colaboração envolve similaridades e diferenças entre as suas operações, as suas estratégias e os seus propósitos. 

Se os espaços são automaticamente factores de legitimidade artística, como acontece, e muito, no caso das artes visuais, em relação as galerias e talvez uma ideia etilizada da arte, na arte urbana a lógica não muda. São os espaços, independentemente de suas características, os factores que conferem a estas propostas artísticas seus valores, sua autenticidade e impacto no meio inserido. Na linha ténue entre a vandalização do(s) espaço(s) público(s) e a manifestação e necessidade de uma autoexpressão, que moveu e move até hoje grande parte dos artistas pioneiros desta arte no mundo inteiro, está a essência duma arte estritamente contestatária. 

O Grafite possibilitou uma nova percepção da arte: de baixo custo, sem cânones estéticos definidos apesar da influência dos estilos modernistas (Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo) e acessível a qualquer um com coragem para enfrentar – em muitos momentos e por essência – sua ilegalidade. Com ele, a arte foi efectivamente para a rua e interagiu com o espaço público e a dinâmica da vida urbana. (Cauquelin, 2010).

Exposições a Céu aberto em Luanda

Por quase todos os cantos da cidade de Luanda, uma policromia contrasta todos os dias entre os raios que enunciam um novo dia, e um jogo luminoso que combinam postes de iluminação e lâmpadas domiciliar nas ruas, faróis de automóveis e o luar. 

Em relação ao grafite, as possibilidades criativas, exploração de materiais e mistura de técnicas são infinitas. Os suportes se expandem entre tons de cinza do cimento: muros, pontes, viadutos, paredes, etc. O poder de intervenção social que esta manifestação possui é algo que, ao nosso ver, não é muito explorado pelos artistas. O grafite, nascido e forjado nas ruas é hoje uma prática institucionalizada em muitas paragens do mundo (o que talvez amortece sua essência revolucionária, o seu sentido de vanguarda). Não estamos a ser generalistas, mas pensamos que o grafite não tem expressão em Luanda por duas razões: primeiro, o que tem estado na base das criações não são elementos que expressam concretamente anseios da colectividade, servindo-se de sua substância contestatária; segundo, o número consideravelmente reduzido de artistas e colectivos enfraquece seu poder de intervenção social enquanto manifestação artística.

O centro da cidade de Luanda (Mutamba, Kinaxixi, Ingombota, Maianga) concentra um número maior de obras, artistas e estéticas. A rua dos mercadores, por exemplo, é cenário para muitas intervenções, sobretudo gravação de videoclipes de géneros musicais como Rap, Kuduro e Afro-House. O mesmo sucede com a fachada da Casa 70 em direcção ao Parque da Independência. Vários são os artistas cuja essência musical tem raízes na street, nos guetos, nos bairros, procurando por estes espaços, na ideia de misturar linguagens, pois são manifestações interligadas culturalmente na urbe. A rua Rainha Ginga conserva algumas pinturas que precisam ser restauradas. O viaduto que liga a travessa do Museu de História Natural apresenta murais e grafites esteticamente muito elaborados, conferindo ao recinto um cenário policromado e bastante agradável de se apreciar. 

Deixando a cidade, o troço que liga o Rocha Pinto ao Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro é uma outra galeria repleta de ilustrações e representações. Os temas são diversos, assim como os motivos pictóricos, passando de uma estética tradicional a linguagens mais urbanas; junta-se a este mapa o troço que liga a Samba à Mutamba, conservando pinturas em muros, grafites, pichações e tags de vários artistas, destacando-se a Verkron; não fica de fora o troço que liga a Vila de Viana ao Cazenga. Entre pichações e grafites, pedestres e passageiros nos candongueiros apreciam várias representações. Estes são alguns lugares que mereceram nossa atenção, certamente que o número de avenidas, ruas e zonas não terminam nem na baixa de Luanda, nem nos bairros mencionados.

As pontes e viadutos não ficam de fora. De forma muito breve, apontamos o viaduto situado no São Paulo, defronte ao prédio do livro. O projecto contou com vários artistas plásticos filiados a UNAP e grafiteiros. As pinturas foram muito bem executadas com temas bastante diversos. Outro viaduto situa-se na via Congolenses-Maianga, em cima do Catetão (campo de treino do Petro Atlético de Luanda), com boas composições e artistas plásticos diversos.

Um pouco sobre eles

O grafite em Luanda é uma manifestação embrionária, com um número muito reduzido de artistas e colectivos. “Ainda é algo inicial. Ainda está muito desorganizado. Não há união entre os grupos. Cada um pinta por si. Temos tido algumas parcerias com um outro grupo, Bawcru, tirando isso, não há mais nenhuma parceria” (Hemak como citado em André, 2016).

Andy Graft é um nome bastante significativo em matéria de grafite em Luanda. A este juntam-se nomes como Spenth e o Colectivo Verkron que são, ao nosso ver, alguns dos nomes mais sonantes desta manifestação artística em Luanda. 

O último inaugurou em 06 de Setembro sua mais recente exposição intitulada Kalunga System, na galeria Jameck, rua dos coqueiros, em Luanda. A exposição trouxe elementos de várias linguagens e técnicas, entre pinturas em tela, mural, fotografia e vídeo-criação. Desde 2010, este colectivo vem construindo um legado artístico que saiu das ruas e institucionalizou-se em projectos como os Murais da Leba e das exposições de arte contemporânea, com destaque à participação permanente no Fucking Globo, plataforma de arte que desconstrói a ideia da galeria como espaço legitimador-elitista. O mesmo colectivo pintou no mês passado, na rua Dr. Américo Boavida, na baixa da cidade, aquele que parece ser o maior mural na cidade de Luanda, numa colaboração com o artista espanhol Mr. Sor Two.

Sem desprimor de outros cá citados e não só, destacamos a Verkron por ser, ao nosso entendimento, o colectivo mais organizado, com um estatuto que o diferencia bastante, muito por conta de seus ideais, convicções e filosofia, assim como o papel de consciencializar e levar às pessoas um olhar interior sobre si e o mundo por meio da espiritualidade que muito cultivam.

E se olharmos para os Sonas?

Pensamos fazer algum sentido associar a pichação aos sistemas de escrita (convencionais e não convencionais), aos ideogramas africanos que são vários e com longos séculos de existência antes mesmo da invasão e ocupação colonial e consequente doutrinação cristã e assimilação das línguas e culturas ocidentais. Se para os orientais (China e Japão) os sistemas de escrita carregam valores e uma forte tradição, para sociedades africanas não é diferente, ao contrário, é muito mais profundo como provam os estudos feitos pelo acadêmico zimbabweano Saki Mafundikwa. Este estudou (entre vários ideogramas) a estrutura dos Sonas – coisa que até ao momento tem pouquíssimos estudos e pesquisas aprofundadas por antropólogos, sociólogos, artistas visuais, historiadores e outros, como angolanos –, descobrindo que os sistemas de escritas africanas (como os Sonas) respondem a uma estrutura de matriz filosófica, científica-matemática, urbanística, defensiva-militar, etc.  O teórico viria a denominar sua descoberta em relação aos ideogramas e todo um conjunto de sistemas de escrita africanos como proto-escrita. Estes elementos estariam relacionados com a maneira como o homem se relaciona com a natureza, em conformidade às práticas que vão da tecelagem, fundição e forja de metais  à escultura em madeira, entre outros. Dada as condições para um salto evolutivo, os homens por necessidade criaram métodos de simbolizações cuja substância viria a definir os códigos de comunicação, colocando à nossa disposição diversos pontos de contacto com o que hoje conhecemos convencionalmente como artes visuais (Paxe, 2016).

Podemos com esta ideia estar a margem de equívocos, mas pensamos, à partida, que estes (os sonas) são objectos de estudo para qualquer artista visual e para todo indivíduo ancorado em estudos artísticos e culturais e em artes visuais, em particular. Assumindo o risco, supomos que os pichadores têm nos Sonas um denso objecto de estudo para seus projectos e processos de criação artística. Apontamos a pichação por ser essencialmente um modo codificado de expressar e abordar questões de interesse do artista por meio da escrita – pelo acto de grafar, gravar. É certo que esta ideia se estende para várias manifestações das artes visuais, assim como a possibilidade de fusionar linguagens e discursos. Mais importante ainda é a necessidade destes pesquisar, estudar de facto a estrutura dos ideogramas, da sua cosmologia simbólica e funcional. A instrumentalização destes ou sua desconstrução só é possível pela pesquisa que pode ser bastante aberta em termos de instrumento para se chegar ao objecto, sendo que, em arte, os elementos convencionais e estrutural-formais em metodologias de investigação e trabalho são bastante abertos e flexíveis.

Referência bibliográfica

Cauquelin A. (2010). Arte contemporânea. Publicações europa-américa.   

Oliveira J. L. V. (2013). A cidade como suporte artístico: o papel do Graffiti em estratégias de renovação urbana. Universidade Federal de Pernambuco. Recife.

Paxe, A. C. V. (2016). A migração fractal do verbo: práticas, sujeitos e narrativas entrelaçadas. Tese de Doutoramento. Pontifícia Universidade de São Paulo. SP.