Kalunga , novo romance de Manuel Rui, recria o processo histórico de resistência às campanhas organizadas pelo Império colonial português com o fim de “tomar de posse as terras ricas” em minerais e capturar escravos.
Os homens feitos escravos aportavam no Brasil, onde floresciam plantações e minas.
Esta empresa colonial constituía, de facto, o fundamento da presença portuguesa em terras que integram a Angola de hoje.
Por isso, desde 1575, os então territórios dos reinos do Kongo, Ndongo, Matamba, Bailundo e outros figuravam em primeiro plano como fornecedores de “peças” humanas (designação predilecta dos “negreiros”) para a indústria do açúcar no Brasil e na chamada América Latina.
Se, até 1914, “o comércio e a posse de escravos eram prática corrente”, como nos ensina René Pélissier (1997), assumimos o risco de situar entre os séculos 16 e 17 os acontecimentos fictícios narrados no romance que Manuel Rui nos apresenta. A justificativa para esta livre perspectiva de leitura tem a ver com o facto de a região do planalto central ser o cenário do episódio nuclear da prosa em referência, para onde as investidas do comércio de escravos se direccionam por volta do ano de 1600.
A trama da narrativa Kalunga remete para a crítica a “missão civilizadora” do colonialismo, que se munia de espingarda numa mão e de uma bíblia na outra.
O romance focaliza uma comunidade que se recusa a oferecer escravos a uma expedição comandada por um fidalgo promovido a capitão, o Miguel. Os guerreiros são encabeçados por Tanu, neto de um soba cujo nome (Lukamba) é homónimo da terra e do rio que dão vida a gerações e linhagens. Unidos num corpo de guerrilha designado “Elavoco” (Esperança, p. 63), os Lukamba assaltam a caravana, capturam as tropas e provisões (p. 7-16).
O ataque à caravana pode ser vista como representação das revoltas conduzidas por vários chefes das comunidades de que nos dão notícias os estudiosos da História colonial.
A presença de Matias, um padre jesuíta, na caravana convoca para a discussão o papel aparentemente contraditório dos missionários ao serviço do Rei de Portugal. O padre Matias assume uma posição intermediária entre a defesa do tráfico negreiro e a protecção da comunidade: evangeliza, organiza o ensino da escrita, mas, também, acautela os interesses do Império civilizador.
Eu sou padre Matias. O capitão é o fidalgo Miguel. Perdoai-me mas também fui obrigado a hipotecar a fé pelo inferno que é a escravatura a que estes homens a mando de um rei cristão também foram obrigados, salvo o capitão e um ou outro mais. (p. 50)
Na realidade histórica, sabe-se que os “jesuítas consideravam imprescindíveis os escravos domésticos e que defendiam expressamente uma participação tanto no comércio interno angolano como no comércio atlântico de escravos”, como escreve a investigadora Beatriz Heintze (2007).
Embora a direcção dos jesuítas tenha proibido a posse de escravos nas casas da ordem e a participação do clero no tráfico de escravos, Heintze sublinha que “as proibições não tiveram efeito em Angola nem mesmo no que respeita a sua forma mais liberal”, isto é, a dos escravos domésticos”, actividade não propensa ao comércio nem à busca de lucros.
Beatriz Heintze (2007, p. 47-48) acredita ter havido “diversas posições” no seio da ordem dos jesuítas em relação à questão dos escravos, pois tal temática gerou “conflitos internos” na congregação.
Há outros caminhos possíveis para a exploração da função histórica do texto de Manuel Rui. Não cabem, como é óbvio, neste espaço exíguo. A título de exemplo, a relação entre os descendentes dos escravos africanos (neste caso, “angolanos”) está estabelecida ficcionalmente por uma comitiva da comunidade Lukamba que viaja pelo mar até ao Kilombo do Zumbi dos Palmares. Uma viagem frustrada, pois os emissários descobrem, afinal, que os escravas Malessu e Ndambo jamais serão vistos, nem se ficou a saber se ainda estavam vivos (p. 208-211). A terra livre dos palmares na colónia do Brasil ensinou uma lição à comunidade do Lukamba: de que a união dos homens pode vencer a potência dos invasores (p. 204). Eis a razão por que a chefatura do Lukamba procura gizar um programa diplomático tendo por intenção convencer o Rei do Kongo e outros reinados a formar coligação (p. 85-87, 120-121, 157-160). Aqui, Manuel Rui valoriza ficcionalmente as coligações formadas pelos “reinos de Angola” no período da resistência à ocupação colonial.