Kuduro, da ideo-estética aos sons mais “fodidos”

Vem o que vier / ninguém mata o kuduro / vocês vão correr um por um / Vocês vão cair um por um (As Palancas, em Viva o kuduro)

Em sentido primitivo, a música estava relacionada a tudo que dizia respeito às musas, tudo que dava ideia de coisa agradável ou bem-posta. A vida seria uma tristeza se a música não existisse, disse certa vez o filósofo alemão Nietzsche.

Três estilos musicais são mais ouvidos em Angola: o kuduro, o kizomba e o semba. Em Angola, o semba e o kizomba são os estilos musicais mais apreciados pela elite. O semba, estilo tradicional angolano, sempre esteve ligado à elite, pois, no período colonial, servia de meio de recreação e de passagem da mensagem para a insurreição, para a luta pela independência e para a esperança de dias melhores num país que ainda não tinha começado. Nas linhas do semba e de outros estilos (como o das músicas antilhanas) surge o kizomba, um estilo, ao que se atesta, criado pelo músico Eduardo Pain, também conhecido por general Kambwengo. Ao lado dos dois estilos, surge um terceiro: o kuduro.

O kuduro é um estilo criado dentro da última década do século passado (xx), não há  uma data certa como alguns estudiosos têm dito (1995), mas podemos dizer que – o estilo propriamente dito – surge entre 1993 a 1994. Ao que se reconhece, o referido estilo foi criado por Tony Amado, mas é com Sebem, pelo seu dinamismo, que o estilo passa a ser visto com mais frequência na televisão, ganhando, décadas depois do seu surgimento, um programa (o «Sempre a Subir», primeiramente apresentado pelo próprio Sebem (em companhia da Carina) e, posteriormente, pelos kuduristas Presidente Gasolina e Príncipe Ouro Negro). O kuduro surge numa Angola que estava no cume de uma guerra entre as FAA, Forças Armadas Angolana, e a UNITA, União para a Independência Total de Angola, que viria a terminar no terceiro ano do século XXI. Contextualmente, uma Angola com uma população, maioritariamente, miserável, se nos ativermos ao princípio de  que se considere pobre todo ser humano que sobreviva, diariamente, com menos de um dólar.

Embora Amado seja o pai do kuduro, o primeiro músico a lançar um álbum desse estilo foi Bruno de Castro. Partindo do método dialético, Simbad (2018) nega a eventual ideia de que o kuduro provenha das zonas periféricas. Em nosso conceber, para se saber a origem do kuduro, torna-se imperativo conhecer o local e a produtora (estúdio, como costumam a chamar os cultores do estilo) onde foi criada a primeira música nesse estilo em Angola (Sambizanga? Rangel? Cazenga? Ou Viana?).

Desde a sua génese, o kuduro sempre foi música e dança. Uma dança que requer muita elasticidade por parte do bailarino. A sua dança  primária era chamada de «underground», um conjunto de movimentos controlados dos braços, da cabeça e dos pés, combinando – ao lado de muita criatividade – movimentos (passos) do ndomboló, do break, do b-boy e mais alguns estilos dançantes. Nos últimos tempos, a sua dança quase que se tem reduzido ao movimento dos pés para os homens e o remexer do glúteo para as dançarinas (normalmente, jovens de bundas avantajadas). Dos tradicionais bailarinos do estilo, hoje, ainda podemos encontrar os irmãos Cara-Feia e Pipino, residentes no município do Cazenga. Quanto aos cantores, podemos dizer que os seus expoentes são: Sebem, os Lambas, Bruno M, Puto Lilas e a Noite-Dia. Dessarte, convém sempre falar de kuduro música casada com o kuduro dança, ou seja, música e coreografia.

Pensamos que, no que toca à ideo-estética, é necessário haver certa cultura e agilidade para se cantar e dançar kuduro cujas canções, geralmente, são feitas com base num «encadeamento de frases (ou versos) que rimam emparelhadamente», objectivadas, nalguns casos, no papel e, geralmente, em registo auditivo. A música kuduro, com o passar dos tempos, desdobrou-se em duas variantes: underground e lamento. O «underground» (como era designada também a dança na sua génese) é cantado, geralmente, numa «prosa composta por frases extensas, exigindo dos cultores, na maioria das vezes, maior aceleração da voz». Já o lamento, mais preocupado com os problemas sociais e pessoais (cujo expoente é o cantor Rey Loy, o pai do lamento), é feito numa prosa menos extensa, menos acelerada no cantar e – em nossa percepção – tem uma sonoridade mais suave.

Se tivermos em conta os dados do último censo em Angola (2014), que indicava que a maior parte da população angolana é jovem, podemos, desse jeito, concluir que o referido estilo é mais apreciado por crianças, adolescentes e jovens e que, como afirma Simbad (2018), «vai-se a uma festa de bairro, e o kuduro ou o que é chamado de afro-house – kuduro retornando à origem, na visão daquele que é tido como o criador – domina as pistas». Outrossim, é possível dizer que essa juventude apreciadora desse estilo musical e dançante (incluindo algumas crianças e adolescentes, como dissemos) vem das periferias, musseques e cidades de Angola (e, com pequeno relevo, do Brasil, de Portugal e doutros países indeterminados), e – ao contrário das palavras do pai do kuduro –  podemos deduzir que o afro-house é a terceira variante (ou um subestilo) do kuduro.

Destacados muitos(?) dos aspectos da historiografia e da ideo-estética desse estilo, é nosso desiderato interpretar, decodificar alguns dos grandes hits do estilo musical, «os sons mais fodidos», nos dizeres dos fiéis apreciadores e cultores do mesmo. Para tal intento, seleccionámos algumas músicas de compositores como Sebem, Cabo Snoop, Fofandó, Bruno M, Os Lambas, Noite-Dia, Rei Loy e o Elenco da Paz. Mapeámos esses cantores, porque pensamos serem dos mais conhecidos cultores do estilo e que, no que diz respeito à ideo-estética, ligada ao estilo próprio e à sonoridade, realizaram músicas que marcaram e maracarão a vida desse estilo (se não foi [será] pela substância das músicas, foi [será] pela dança).

Para começar, esclarecemos que se muitos dos kuduristas são vistos como delinquentes pelo modo como se vestem, pelo uso de brincos, cortes de cabelo extravagantes e pintados e, na maioria das vezes, a maioria das músicas do estilo em causa são marginalizadas pelas suas mensagens.

Ora, Sebem, na música «A felicidade», mais do que tudo, procura transmitir o prazer da felicidade, o quão boa ela é. Numa Angola que estava (ou vinha) de uma guerra, era, obviamente, uma mensagem como essa, de que «a felicidade todos nós queremos», que acalmaria ou levaria as pessoas ao deleite, a esquecerem – ainda que por pouquíssimos minutos – as sequelas do conflito armado que separou e dizimou milhares de pessoas. Assim, apesar de poucas palavras (versos), «A Felicidade»  é um dos melhores hits do kuduro, porque traz uma mensagem que todo um povo precisava para dançar e festejar pelo fim de um mal que durou quase ou vinte e dois anos.

Cabo Snoop, vencedor da categoria de «Músico de África em Expressão Portuguesa» do aclamado prémio Mtv base, no hit «Windeck», denuncia o aproveitamento, sobretudo, dos homens para com as mulheres quando estas estão em estado de embriague, quando sabem que um homem está extremamente apaixonado por elas e, também, tenciona denunciar a prostituição e o exibicionismo. Assim, a música Windeck, mais do que pela mensagem, fica marcada como um hit pela sua dança. Nota-se que a referida música chegou a dar título a uma telenovela, produzida pela Semba Comunicações.

Fofandó, a primeira mulher a cantar kuduro, na música «Iniquidade», transmite uma mensagem de abandono do mal, mandar a «iniquidade fora» da vida das pessoas (ou dos locais de convívio). Deve-se ter  em conta, ainda, nesse hit, a passagem que, quase como na bíblia, chama atenção para se ter em mente a dualidade da vida e da morte, porque «viemos do pó, mas é do (ao) pó que voltaremos». É, sem dúvidas, para se terminar a interpretação, um dos hits desse estilo dançante, pelas massas.

Bruno M, na música «Anda pára», começa por cumprimentar os senhores e senhoras, parecendo que está a dar um discurso numa tribuna. Ainda na primeira estrofe mostra que ele não canta por interesse, cita o nome de algumas pessoas que lhe têm ajudado no mundo da música (uma das características do estilo) e, em gesto de repúdio aos seus colegas que não fazem música com boa estética e conteúdo, sentencia que «se cantar à toa fosse crime, muitos estariam atrás das grades». A segunda e a terceira estrofe são dominadas pelo ego do cantor, que exibe a beleza das suas músicas e chama atenção para a tristeza que reside no seu âmago, apesar de muitos o terem incentivado a continuar a fazer kuduro. Realçam-se, na terceira estrofe, duas frases que carregam lógica e filosofia: «o peixe não enche o cesto se não for retirado do mar» e «(as) virtudes do homem honesto são como o sol quando está a brilhar». Contudo, no hit «Anda pára», é na quarta e quinta estrofe que, apesar do exagerado ego do músico, há mais conteúdo, porquanto, nela, o músico protesta contra a riqueza de algumas pessoas quando a maior parte da população angolana vive em situação de pobreza, a falta de habitação própria para muitas famílias, reafirma o seu gosto especial pelo estilo kuduro, apesar de ouvir também outros estilos musicais, reclama a perda de identidade africana por parte de muitos africanos, a banalização das línguas africanas, a perda dos valores morais, do civismo e da moral, afirma que o kuduro é o estilo da maioria e, o que poucos kuduristas fariam, admite que ele, Bruno M, sem os seus ouvintes, «é como um atleta que não tem pés». Enfim, como «A dança dos combas», o «Ma», o «Aonde», o «Por cada lágrima» ou o «Tchubila», «Anda pára» é um dos melhores hits do kuduro, pela dança, sonoridade e o conteúdo.

Os Lambas, no hit «Diga não ao crime», trazem uma mensagem positiva para a juventude que anda perdida no mundo da delinquência; procuram incentivar a juventude a apostar no estudo e no trabalho; afirmam não serem bandidos. Nesse hit, o apelo deles «vai para os adultos e os adolescentes, para não levarem o crime na mente», para «terem mente criativa», andarem de cabeça erguida, sempre firme, não fazerem o que lhes prejudica, porque o tempo é curto; para participarem da luta contra o crime (da delinquência ao aborto, segundo um dos versos cantado pelo Nagrelha, o Estado Maior do kuduro). Outrossim, realça-se, nesse hit, a seguinte passagem filosófica: «ser esperto não é ser inteligente» (Bruno King). Portanto, «Diga não ao crime» é um dos melhores hits do kuduro, e se não for dançante, deve ser apreciada a mensagem que abarca nas suas entranhas.

O kuduro é um estilo musical dançante. É o estilo mais ouvido e mais dançado em Angola. As suas músicas, na maioria das vezes, são manifestações do ego e da criatividade dos artistas que o cantam

Noite-dia (ou Noite e Dia, como é grafado habitualmente), na música «Abre o livro», procura transmitir a ideia de que ela é a rainha do kuduro e faz uma réplica às pessoas que dizem que não dançam kuduro. Embora o coro dessa música remeta para uma mensagem positiva, pensamos que a verdadeira mensagem que a cantora queria transmitir com o coro não seja a de «abrir um livro», pois a dança desse hit não envolve algum livro. Segundo a nossa visão, o coro dessa música incentiva os bailarinos a dançarem com mais movimentos das pernas, a abrirem as pernas «sem maldade». Sabendo que o/a artista é o criador de coisas belas, Noite-dia, criou esse hit e, como as melhores manifestações artísticas surgem do inconsciente, concebemos que ela não chegou a dar por conta de que o livro que pede para ser aberto seja uma metáfora das pernas. Portanto, «Abre o livro» é uma das músicas mais dançada e mais ouvida do estilo musical kuduro e, pelo modo como as bailarinas da Noite-dia e a multidão dançam, esse hit levanta polémica sobre o seu verdadeiro intento, permitindo múltiplas interpretações, das boas às más.

Rei Loy, o rei do kuduro lamento, na música «Minha profissão», traz a mensagem da importância do trabalho digno (não importando qual seja). O cantor procura dizer que aguarda o seu momento de sucesso, que tem esperança de atingir a ribalta. Aconselha as pessoas a não sentirem vergonha dos seus trabalhos, porque mais vale trabalhar do que ser ladrão ou viver das aparências. Por   outra, ele apresenta o sofrimento da população das zonas periféricas. Como podemos constatar nos seguintes versos: «O pai é pobre mas a mãe é doente / Os canucos não estudam minha camba não trabalha/ Pensar no futuro e pedir sempre pra Deus».    

O Elenco da Paz, segundo classificado do Top dos mais Queridos 2017 – em nossa percepção, um dos grupos que melhores mensagens tem procurado transmitir por meio do estilo kuduro –, na música «Da Zungueira», mostra a importância da zungueira (vendedeira, normalmente nos locais impróprios para a venda, ou ambulante), o relevo que a sua banheira (negócio) tem para o seu bem e para o bem de toda a sua família. Os cantores apresentam a zungueira como uma mulher batalhadora, dinâmica e trabalhadora. «Da Zungueira» também é, com certeza, uma chamada de atenção para os fiscais (funcionários das administrações municipais que têm, diariamente, o papel de evitar a venda ambulante nos cascos urbanos) e para aqueles que menosprezam a actividade dessas mulheres que, vendendo, levam «o pão de cada dia» \ para as mesas dos seus lares, ou seja, sustentam as suas famílias. Dessarte, se soubessem o quanto é importante a banheira da zungueira, os fiscais não a levariam, e o resto dos cidadãos nunca banalizariam o esforço delas. Enfim, é essa musa, zungueira, (que chegou a inspirar o poeta nacional, Agostinho Neto, e muitos outros homens fazedores da poesia angolana) que o Elenco da Paz, grupo mais premiado a nível do kuduro, traz como fundo do hit  «Da Zungueira».

À guisa de conclusão, podemos dizer que o kuduro é um estilo musical, principalmente, dançante. Por outro lado, é o estilo mais ouvido e mais dançado em Angola. As suas músicas, nas maioria das vezes, são manifestações do ego e da criatividade das crianças, adolescentes e jovens que o cantam, mas alguns cultores (como Bruno M, Bd Bigodão, Rey Loy, Dj Nile, Rey Panda e o Elenco da Paz) têm procurado, com as suas músicas, mostrar a realidade social, económica, política e cultural de Angola, ou seja, chamar atenção para com a delinquência juvenil, a pobreza, a desigualdade social, o desemprego e a unidade nacional. 

FONTES DE PESQUISA

http://nguimbangola.blogspot.com/2007/12/zungueira-e-potica-da-sobrevivncia.html  (Recuperado em 20 de Julho de 2018)

http://mrtzcmp3.eu/?artist=Os-Lambas&track=Intro (Recuperado em 22 de Julho de 2018)

https://www.youtube.com/watch?v=3VgKgwvxd14 (Recuperado em 25 de Julho de 2018)

https://www.youtube.com/watch?v=DEPid5A13-c (link de hits de kuduro, Recuperado em 27 de Julho de 2018)

Simbad , H. (2018). Entre a violência simbólica(?) e uma estética subversiva – o kuduro, Revista Palavra e Arte: Luanda, Recuperado em 1 de Julho de 2018 de http://palavraearte.co.ao/entre-a-violencia-simbolica-e-uma-estetica-subversiva-o-kuduro/

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