Literatura e direito, uma interface necessária

A questão sobre Direito e Literatura em Angola ainda constitui uma novidade não só para os juristas e literatos, inclusive para grande parcela da comunidade científica, que vêem essas abordagens e articulações com certa estranheza e, de certo modo, de forma supérflua. As incursões promovidas nesse campo de investigação têm uma tradição centenária, visto que atravessam a história do século XX. Nos Estados Unidos, por exemplo, sua origem vem atribuída, tradicionalmente, à publicação do ensaio A List of Legal Novels, de Wigmore (1908). Sob a égide daquilo que, posteriormente, convencionou-se denominar o Direito na Literatura, Wigmore elenca inúmeros romances, especialmente narrativas anglo-saxãs modernas, em que emergem as mais variadas temáticas jurídicas. Em 1925, Cardozo (1925) publica o ensaio Law and Literature, voltado para o estudo do Direito como Literatura, através do qual examina a qualidade literária do Direito. Na Europa, as primeiras experiências sobre esta temática surgem com o artigo publicado na Itália por Pergolesi (1950), para quem a literatura de um povo contribui, entre outras coisas, para conhecer a história do seu direito, e os ensaios de Fehr (1931-1936), publicados na Alemanha e na Suíça, que compreende o direito como sendo um fenómeno natural comum para a educação dos sacerdotes da lei e, assim, também, dos cultores da literatura, enquanto a literatura apresenta-se aqui como fonte da ciência jurídica, e um importante caminho para criticar às instituições jurídicas. Portanto, a narrativa histórica apresenta como os pioneiros da interface Direito e Literatura Wigmore e Cardozo.

Literatura e Direito são áreas do saber que possuem próxima relação e que têm como objectivo comum a compreensão e a representação da realidade, como refere Santos (em Trindade, 2008, p. 246): “a literatura enquanto arte extrapola os limites, dado ao carácter plurissignificativo da linguagem. As várias possibilidades de significados do texto literário se processam graças a elementos estilísticos provocados de efeitos estéticos”. Em contrapartida, o Direito comunica-se por meio de linguagem lógica, coerente, directa, procurando limitar as incongruências, as ambiguidades que suscitem diferentes possibilidades de interpretação do texto.

O tratamento literário do Direito deve ser uma constante, tendo-se em vista que o Direito é um sistema social e a Literatura postula reflectir acerca dos fenómenos sociais e também fornece uma boa resposta para se compreender o porquê e a finalidade da construção dos discursos dos jurisconsultos; a Literatura oferece uma descrição acurada dos modos de relação entre os juristas e os leigos no Direito. Inúmeras são as tipologias e classificações que têm sido propostas para abarcar tais articulações. Restringimo-nos, aqui, a apresentar as três correntes destacadas por Trindade (2008, pp. 11-66): direito da literatura, direito como literatura e direito na literatura.

A corrente do direito da literatura concebe uma matriz essencialmente jurídica, pois atém-se à legislação aplicável a obras literárias enquanto produto intelectual e restringe-se às discussões jurídicas que, relativas a diferentes esferas do direito, incidem sobre as liberdades e garantias individuais, sobre os limites e a liberdade de expressão face à censura e ao direito à intimidade, sobre os direitos autorais e a propriedade intelectual, os crimes de imprensa, as normas sobre o exercício profissional de escritor e políticas públicas voltadas para a leitura, entre outras. Assim, nessa corrente, estamos diante do texto literário como objecto da ciência jurídica. Já o direito como literatura concentra-se em abordar as qualidades literárias dos textos jurídicos. Observa-se aqui uma inversão: os textos jurídicos tornam-se objecto da ciência literária, visto que conceitos oriundos deste campo assim como dos campos da linguística, sobretudo da análise do discurso e das ciências da comunicação, são adoptados como instrumentos para a leitura e intepretação dos textos legais, em especial no que se refere às decisões judiciais. Os estudos mais recentes do direito como literatura, todavia, promovem uma aproximação do direito com o campo literário que ultrapassa a esfera analógica, guiada pela correspondência de aspectos linguísticos, estéticos e semióticos, relativos à compreensão dos textos jurídicos como produção literária ou produto cultural, na medida em que às formulações investem de forma mais incisiva no carácter narrativo e, até, ficcional do direito (Marí, 1998, p. 251). Por fim, temos a corrente do direito na literatura que reúne os estudos dedicados à investigação das representações literárias da justiça e do direito, abarcando suas instituições, procedimentos e actores, bem como a temática concernente ao universo jurídico que se faz presente em textos literários, e no qual se verifica a ênfase em funções tradicionalmente atribuídas à literatura.

Pensamos que, se a literatura pode promover a ampliação do horizonte de compreensão dos estudantes e profissionais da área jurídica, instigando a reflexão acerca dos fenómenos jurídicos e sociais e colaborando para uma formação mais crítica e humana, o direito também pode fornecer aos estudantes e profissionais da área de literatura subsídios oriundos da esfera jurídica a serem considerados na interpretação do texto literário e integrados na construção do sentido a ele atribuído, pois, Direito e Literatura são textos, reclamam uma actividade que apure o sentido de suas construções, evidenciando a relação entre o construtor-legislado­r e o destinatário-cidadão­ da norma jurídica.

Referências bibliográficas

Cardozo, B. ( 1925). Ensaios – Law and Literature

Fehr, H. (1931). Ensaio – Das Recht in der dichting e Die Dictcing um Recht.

Pergolesi, F. (1950). Contribucion aportada por la literatura narrativa y teatral a la sociiologia jurídica. Revista Inter.

 Marí, E. (1998). Derecho y Literatura Algo de lo que si  se puede hablar pêro en voz baja.

Trindade, A. K. (2008). Direito e Literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito. 5ª ed. Porto Alegre.

Wigmore, J. H. (1908). Ensaio – A list of legal novels. Texas.