O dilema de Fina

Não sabia como começar, não pensara nem no que dizer, estava ainda incerta do que ia fazer. Valeria mesmo a pena? O que iriam pensar dela? O que iria ela pensar de si mesma? Saberia lidar depois com a situação? E como ficaria a honra de Toya, sua mãe, falecida há seis anos? E ainda a educação que Lando, seu pai, lhe dava? Afundava-se um mar de dúvidas sem fim fazia muitos dias. Perturbada, enrolava-se durante as noites com os mesmos pensamentos que lhe roubavam o sono, e talvez também os sonhos. Fina já não era uma menina, iniciava-se nos anos turbulentos da vida adulta. Quieta, como sempre fora, não causava embaraços a ninguém. Há mesmo quem chegue realmente a dominar o mínimo que seja? – inquietação do narrador, tão confuso quanto Fina, que nada tem a ver com a pobre mocinha. Esta andava mudada e as pessoas notavam. Algumas associavam a mudança à perda da mãe, tragédia passada já há algum tempo, e, na altura, a menina não demonstrara grande dor, embora sentisse e sofresse calada, sozinha, fingindo uma força que nunca teve. Essas pessoas achavam que ela era pequena demais para compreender a perda de uma mãe, só agora, um pouco mais crescida, sofria de verdade ou tornava-se estranha pela falta que a mãe lhe fazia. Elas estavam erradas, Fina sabia e o pai também. Lando preocupava-se com as irregularidades no comportamento da filha, sabia que alguma coisa a incomodava, e perguntava: “Filha, o que se passa? Faz tempo que andas diferente. Sabes que, se alguma coisa te inquieta, deves me dizer que farei sempre de tudo para te ajudar. Tens algum problema?”. Ao que Fina respondia sempre invariavelmente: “Não se passa nada, papá. Se eu estiver com algum problema, o papá será sempre o primeiro a saber”. Mentia, os dois sabiam, mas o pai deixava-a ter o seu espaço, ganhar a sua coragem e autoconfiança, sabia não era por mal. Mas ela não – toda mentira era um mal, ficava triste consigo mesma. O pai não pensava assim – só não ia dizer isso à filha –, acreditava existirem mentiras benéficas ou simplesmente sem mal nem bem amorais. A maldade residia na intenção de enganar, de tirar proveito próprio ou infligir problemas aos outros. Para Lando, a falsidade, usada com bom senso, era ingrediente fundamental nas relações humanas. Era, contudo, um homem verdadeiro, de coração sincero.

Fina foi aconselhar-se com Miguel, o amigo com quem partilha uma bela amizade desde os tempos em que ainda brincavam na areia, descalços, com outros miúdos e miúdas do bairro, andando de cuecas e uns ainda nus naquele jardim do éden onde a nudez não era ainda pecado, entre lixos e águas paradas – não há jardins públicos nos musseques. Miguel, miúdo franzino de olhos grossos que usava um par de óculos fundo-de-garrafa, era dotado das palavras e era o confidente de Fina, tinha ideias de que ela e os outros miúdos não entendiam, mas admiravam. Muitas destas palavras eram emprestadas de livros que lhe dava um tio ou que ia ler numa das poucas bibliotecas no centro da cidade, outras originalmente suas, mas com um esoterismo forçado ou malabarismo retórico, outras ainda que também só reproduzia, porque eram defendidas por pensadores que ele ia aprendendo a admirar pela aclamação que tinham. Em todo o caso, eram ideias que lhe faziam parecer um intelectual, um grande pensador, e, de certeza, um dia viria mesmo a ser. Mas no seu meio mais imediato, Miguel já era sim um miúdo truta, com cabeça para frente.

– O que te impede de fazer o que queres? – Perguntou Miguel quando Fina lhe apresentou o problema.

– Não tenho coragem, Miguel. Não sou capaz e, além do mais, acho que é errado e vergonhoso. Mas não consigo tirar da cabeça. Também acho necessário, e dá-me mesmo vontade, de ti não escondo. Mas tenho medo dos olhares das pessoas se souberem da reacção do meu pai. Sei lá, é tanta coisa.

– A sujeição imposta à moralidade pública é o maior calvário para um homem lúcido. Mas não ser senhor das suas próprias vontades é ruína para um homem sábio. Minha amiga, não me queres dizer o que de facto de aflige, dizes-me apenas que queres fazer algo de que não te sentes capaz, que temes recriminações. Conhecendo-te como conheço, imagino que o teu dilema seja deveras delicado. Não te julgaria de forma nenhuma, se me contasses seja o que for, eu gostaria muito de saber para te poder ajudar melhor. Mas respeito que não te sintas em condições de falar, a tempo oportuno de certeza saberei. Digo-te apenas que os problemas têm sempre o tamanho que lhes damos e os medos são quase sempre maiores do que devem. Porém, as tuas acções nunca são só tuas, elas têm implicações na vida dos outros directa ou indirectamente, e motivações que te escapam a origem. Não sejas escrava, nem de opiniões alheias e nem de tuas próprias vontades inconsequentes.

Fina saiu da conversa com Miguel com mais dúvidas do que as que tinha quando entrou. Porém, ficou em paz consigo mesma. Miguel tinha o poder de a confortar mesmo a baralhando. Haveria de pensar sobre as coisas que o amigo falou e lhes descobrir alguma utilidade. Quase sempre conseguia. Muitas vezes utilidade que o próprio Miguel não via e nem imaginava nos seus infinitos discursos. Era assim que tratavam as suas conversas, como discursos, palestras, só ele falava, e por longos minutos. Muitos o achavam chato.

Fina tomou, enfim, coragem para a sua empreitada. Começaria por falar com o pai que certamente diria “Tu perdeste a cabeça? Onde foste tirar essa ideia? Já pensaste na memória da tua mãe?”. Não aceitaria, isso era certo, mas também sabia que Lando nunca a viraria às costas, seria sempre seu pai e não revogaria isso por mais que discordasse ou se envergonhasse de algo feito por ela; amava-a de verdade, ela sabia. Lando já a esperava para a conversa, ela avisara-lhe de manhã. “Pai, preciso dizer algo. Podemos conversar hoje à noite?”, ele aceitou de primeira, sabia que esse dia chegaria, deu-lhe o espaço que precisava e agora ela já havia reunido coragem para contá-lhe o que a inquietava. Mas o tom da sua voz fez Lando adivinhar uma conversa triste, um assunto pesado. No entanto, aguardou expectante pela conversa.

Fina chegou com a lição bem estudada, tinha ensaiado tudo o que iria falar e tinha-se preparado para possíveis reacções que o pai teria. Chegara a altura de contar primeiro a ele e depois ao mundo, ou este saberia por si, sempre tão atento aos pormenores das vidas de cada um. Fina mirou os olhos do pai, lembrou-se das últimas palavras de Miguel, “Não sejas escrava”, ignorou as palavras intermediarias, já não se sentia submissa às opiniões alheias, só se ateve à fala final do discurso, “nem de tuas próprias vontades inconsequentes.”. Com isso, abraçou o pai e fez esfumar entre os pensamentos a ideia de que lhe grudara à cabeça. Não contou a ninguém, nem sequer ao narrador. O assunto deixou de a perturbar e ao narrador também.