Mbanza Congo, Património Mundial da Humanidade| Foto: Agamoto

O golpe fatal contra a cultura espiritual africana arquitectada pela igreja Católica no trono do Reino do Kongo

A sede de descoberta, comercialização, permutação e exploração para se solucionar necessidades eram tecnicamente as principais forças que moviam os navegadores portugueses, assim como outros navegadores de outros reinos europeus que, após aqueles, também se fizeram sobre o atlântico em busca da satisfação de suas necessidades ou aflições. Os navegadores portugueses, para além da tripulação, também faziam-se acompanhar de missionários e padres da igreja católica, esses últimos viriam a desempenhar um papel obscuramente fundamental no que se tornaria essa aventura intercontinental através do atlântico.

Depois de meses sobre o atlântico e antes de terem atracado em algumas ilhas como em algumas terras em torno da costa africana, em 1482, o navegador português Diogo Cão atracava na foz do rio Zaire, começando assim um dos capítulos mais negro da história do reino do kongo como de outras soberanias vizinhas que depois também foram vítimas das mesmas barbáries cometidas pelos portugueses e outros exploradores europeus que também, em nome de Deus, destruíram reinos soberanos em toda África. Após os portugueses manterem os primeiros contactos com o povo da região e muito antes de se começar o vergonhoso processo de tráfico de escravos, estes dedicavam-se ao comércio de manufaturações de uso básico na civilização portuguesa trazidas consigo nessa aventura, como também a venda de armas de fogo, que conferiria ao rei do reino do kongo, Nzinga a kuwu, vantagem na caça e também na supressão da rebelião interna. Os missionários e padres portugueses que se faziam acompanhar dos navegadores, dedicavam-se a doutrinação sistémica baseada no evangelho de Cristo, processo esse que culminaria em uma maior aproximação aos dirigentes do reino do Kongo, e o consequente baptismo do rei Nzinga a Kuwu para Rei Dom João 1° em 1491, processo que também viria afectar profundamente as bases da educação do sucessor do rei Nzinga a Kuwu, seu filho varão Mvemba a Nzinga, que depois de batizado veio a chamar-se príncipe Dom Afonso 1°, e depois da morte de seu pai em 1507, seria entronizado como rei do reino do Kongo.

E é em Mvemba a Nzinga, fruto dos longos anos de doutrinação antes de sua entronização após a morte de seu pai, que a igreja viria a materializar uns dos golpes mais duro contra a cultura espiritual africana, a ruptura entre a ordem e o poder tradicional do reino representados pela dona Mpolo, mãe do rei Mvemba a Nzinga, pela conversão em massa ao catolicismo e sua promoção no reino pelo próprio rei Mvemba a Nzinga. Mvemba a Nzinga não só acreditava na superioridade da civilização e religião portuguesa, como também estava energicamente decidido a propagá-las em todo reino. Após ter tomado posse, Mvemba a Nzinga ordenou que se quebrasse e se jogasse fora tudo aquilo que do ponto de vista da igreja eram considerados idolatrias, bruxarias como as superstições que o povo praticava e adorava, proibindo tais actos, e afirmando mesmo que qualquer informação que lhe chegasse sobre um caso de desobediência às suas ordens, o castigo para tal infractor seria a morte. O reino em tão pouco tempo ficou limpo da idolatria e outras práticas proibidas, desenvolvendo-se assim uma nova crença na nova religião que se instalou sobre o reino. Somente dona Mpolo, sua mãe, não quis largar tais práticas, e como o rei estava profundamente doutrinado, e claramente sob a influência e controle sistemático dos padres, não queria ter uma mãe idólatra e infiel à doutrina que este elevou acima das tradições e costumes do reino, pois no seu ponto de vista formatado pelos padres da igreja, para além de ser um sinal de fraqueza, se não fosse solucionada, aquela situação futuramente desenvolveria um núcleo que depois, provavelmente, com apoio de reinos vizinhos, se insurgiria contra o poder que a igreja havia alcançado no seio dos dirigentes como em todo reino do Kongo. Por esses e outros motivos, Mvemba a Nzinga decidiu fazer de sua mãe um exemplo contra a idolatria e todas as práticas que iriam contra os fundamentos da nova religião. Pelo que mandou cavar uma sepultura de fronte a igreja de São Miguel situada no centro da cidade de Mbanza Kongo e, estando presente o rei com todo o povo à boca da cova que este secretamente mandara fazer, mandou chamar sua mãe, para que viesse à igreja assistir a um culto. O rei Mvemba a Nzinga fingia santamente que sua mãe nem desconfiava da armadilha preparada para si. Após sua mãe ter chegado, mandou seus súditos mostrarem a sua mãe o lugar que estava armadilhado para a morte da mesma, e ela sem desconfiar da armadilha, ao dirigir-se ao assento destinado a ela, caiu na cova, sucedido isto, o rei Mvemba a Nzinga, com voz alta, ordenou que a enterrassem viva, dizendo que, aquela que despreza a religião não era sua mãe. 

Esse acto que culminou com a morte da mãe do rei não só enterrou a vanguarda da tradição espiritual africana, como toda possibilidade de efectiva evolução da mesma, enterrando assim as crenças espirituais africanas a séculos de profanação, involução, expropriação, deturpação, etc. A sistemática destruição das tradições e costumes africanos perpetrada pela igreja ao longo de séculos reflecte-se hoje no desestruturado conceito social de espiritualidade no seio das famílias e da sociedade, duma forma geral, que se tornaram cada vez mais analfabetas espiritualmente, tornando-se presas fáceis para os novos e selvagens conceitos de religiosidade que proliferam em todo e qualquer canto do país, como na maioria dos países africanos. Estas religiões não diferem da sua progenitora, cujo objectivo disfarçado, em meio as palavras sagradas de um deus estrangeiro, é a exploração da ignorância espiritual arquitectada ao longo dos séculos pela igreja católica e agravada, nas últimas décadas, pelos inúmeros conflitos armados e étnicos que ocorreram na maior parte dos países africanos, exploração que culmina sempre em arrecadação de bens ou monetização pela fé cega daqueles que, a qualquer custo, ainda buscam e pagam por milagres, tornando assim cada vez mais dogmática e unilateral a crença dos cidadãos e menos equilibrados financeiramente, como a consequente desestruturação de inúmeras famílias que, através de suas crenças e obediência cega às palavras de seus supostos líderes espirituais, tudo e mais alguma coisa são capazes de fazer quando vagamente lhes é assegurado que seus actos, para além de serem a vontade do todo poderoso deus, garantirá sua prosperidade, saúde, paz, harmonia familiar, etc.

Do pouco que restou das verdadeiras tradições e crenças espirituais africanas, pouco ou quase nada se desenvolveu, e os poucos que herdaram tais práticas de seus antepassados, para além de serem estigmatizados fruto da desvirtuação dos princípios de tais práticas – antes consideradas sagradas pelos seus ancestrais – como do seu mau uso nos dias de hoje, nada têm feito para resgatar o valor e o uso da espiritualidade africana positiva no seio das comunidades em que desenvolvem tais práticas – limitando-se apenas a comparecerem como autoridades tradicionais quando evocados protocularmente para actividades políticas – que infelizmente, desde o princípio da sua sistemática destruição até os dias de hoje, é olhada com superstição e conotada a práticas obscurantistas, levando mesmo tais praticantes como as pessoas que ocorrem a estes serviços a desenvolverem um comportamento ambíguo caracterizado pela frequência de centros umbandistas e ao mesmo tempo a participação regular nas missas dominicais de alguma igreja ou seita cristã no intuito de dispersar as opiniões de terceiros para que não se levante algum cochicho sobre suas crenças.

A sobrevalorização e consequente depreciação dos princípios culturais e espirituais africanos não deixa de ser um erro dos próprios governos africanos, que legalizam instituições religiosas estrangeiras, que ao seu belo prazer tiram vantagens da ignorância espiritual dos cidadãos nacionais e que indirecta e consequentemente mais problemas produzem para o país. E um caso pontual sobre o reino do Kongo: o governo de Angola através do seu ministério da cultura, ao invés de desenvolver um programa de pesquisas e reavivamento dos princípios culturais e espirituais do antigo reino, por exemplo, está preocupado em elevar Mbanza kongo, a antiga capital do reino, a património mundial da humanidade, sub-entendendo que o título é maior ou que a exposição para fins turísticos é melhor que toda tradição e cultura que o povo do reino do Kongo desenvolveu e que quase perdeu completamente através dum acto primitivo perpetrado pelos colonos e pela igreja católica, mas através de um programa sério de pesquisa podem ser reavivadas e úteis nas transformações que se esperam profundas nesse novo despertar dos governos africanos que praticamente já sabem que um povo sem cultura ou que despreza seu passado é um povo sem futuro; úteis também nas transformações que devem surgir das transformações baseadas numa ampla educação do que foi verdadeiramente o reino do Kongo e outros reinos que hoje formam este país, Angola, como seus princípios culturais e de soberania que regiam os reinos, num objetivo claro de mitigar principalmente a ignorância dos nossos jovens sobre a cultura africana.

Como consequência do tráfico de escravos, muitos dos principais praticantes destas tradições espirituais africanas que não escaparam deste acto primitivo conservaram tais práticas e continuaram-nas a praticar clandestinamente nas terras onde eram enviados, e uma dessas terras é o Brasil, uma das poucas terras onde tais práticas nos dias que se seguem apresentam um desenvolvimento significativo, tanto nas práticas e conceitos, como no desenvolvimento de outras vertentes e religiões de matrizes africanas que, comparadamente aos Estados Unidos da América que foi uma das primeiras colónias a receber os primeiros escravos oriundos de África, apresenta um número significativamente superior de centros e praticantes das religiões de origens africanas. 

Infelizmente o subdesenvolvimento da maior parte dos países africanos, para além dos motivos óbvios apontados por estudiosos das ciências modernas, tem como factor subjectivo e indissociável, a destruição das soberanias e dos princípios culturais espirituais a que a África foi submetida a quando da longa e destruidora passagem dos colonizadores europeus por este continente, e que mesmo após as independências de todos os reinos colonizados, os efeitos ainda são profundamente sentidos nas sociedades e no quotidiano dos seus habitantes, e que infelizmente ainda perduram até os dias de hoje por falta de um investimento significativo e uma maior diversificação dos programas curriculares do sector da educação em quase todos os países africanos, que, para além de sérios défices nesse sector, ainda apresentam outros sérios défices nas áreas sócio-económicas que indirectamente concorrem para um nível menor de literacia da população, sendo a área social a que apresenta uma necessidade urgente de reforma a nível continental. E é com esse intuito que a união africana (UA), através dos seus departamentos de estratégias e políticas sectoriais, exigiu que os países africanos a fazerem os possíveis para que 20% do orçamento geral dos países que compõem a união africana sejam direccionados para o sector da educação, como um  estímulo necessário ao desenvolvimento que África urgentemente precisa, e que evidentemente só é atingido com a evolução técnica e científica dos quadros humanos.

E o desenvolvimento de África, por mais que seja uma terra rica em recursos variados, está intrinsecamente ligado à recuperação e valorização de seus princípios e valores culturais e espirituais, profanados ao longo dos séculos, bem como na educação integral que, para além de poder trazer o desenvolvimento estrutural para África e ajudar no seu desenvolvimento independente, também permitirá, de certo modo, a recuperação e valorização dos princípios culturais e espirituais africanos.