O silêncio de outros amores

Depois de alguns dias de chuva, um estrondoso vento desabou muitas casas e os moradores desassossegados foram morar noutro kimbo. Houve uns dias de bocado de fome em que as pessoas já não tinham outros pensamentos.

Ndumbi andava com um balde, ia buscar água ao rio, na baixa do kimbo. Só pensava na Uanja. Todos os dias, ninguém queria lhe dar oportunidade de conhecer outras pessoas. Noutros kimbos? Ninguém lhe aceitava. A lavra era mais morada dele do que o kimbo.

Quando vinha com o balde cheio de água, umas vavós resmungavam, porque era já um rapaz, tinha que ser livre das ordens do tio. Vivia com o tio que parecia que não banhava há muito tempo ou tinha problema com isso. Tinha um cheiro desagradável, mas Ndumbi suportava. Os outros da família queriam que ele fosse na cidade aprendera carpintaria, mas a palavra do tio era a mais importante e ninguém conseguia convencê-lo.

 – Ndumbi! Ainda vem.

O Ndumbi foi a correr,já cansado, já que havia triturado muito milho no almofariz, e a cara já pingava alguns cristaizinhos de suor.

– Sim, tio – respondeu, já com a camisa acariciando no rosto para limpar o suor.

– Tens de fazer um favor: nunca podes visitar o teu avô Santos. Ouviste, né?

– Está bem, tio.

Agora toda liberdade lhe tinha sido arrancada da vida, porque no único lugar onde podia passear era no vavô Santos, e lá podia ver Uanja lavar os pratos, copos e colheres. Quando cumprimentava Uanja, sentia um toque de espírito. A miúda era bonita, o seu andar sugeria atenção dos outros rapazes do kimbo, tinha uma pele das pessoas da cidade.

Naquele inspirador dia de domingo, o miúdo corria para o kimbo, havia algo de errado na lavra, o incidente norteou no nervosismo das manas:

– Wa palama… a mbua… ku kuete olondungue.

O rapaz correu para explicar o ocorrido no tio. O tio não estava na cubata, sentou na esteira, os olhos vigiavam, ora à esquerda, ora à direita, procurando pelo tio. O coração começou a bater mais forte, que os pensamentos ficaram embriagados quando, na penumbra de um baixo capim, aparecia a figura da miúda Uanja.

– O que está a fazer? Queimaram a vossa lavra e ainda sentas tranquilo?

– Não estou tranquilo, vim avisar no tio!

– Mas avisar o quê?Terias de impedir que o fogo pulasse para as outras lavras. Agora vai lá ver do jeito que as tias estão a falar.

Ndumbi não pensou direito, a maka tornou-se mais séria do que ele podia imaginar. Como é que o tio vai agir? O que vai pensar de mim?, levantou-se preocupadíssimo. Os pés fixo no solo estavam seguros, mas a mente não tinha leito para se encostar.

– Eu tenho que fugir, não vou suportar as palavras do tio – com medo, disse.

– Fugir pra quê? Você não é homem? Por que foge das makas? – lhe perguntava Uanja.

O rapaz esperou respirar mais uns seis segundos para apressar o passo, mas não tinha para onde ir, na única casa que era bem-vindo era no vavô Santos, e neste lhe foi proibido a nunca pisar seus pés.

– Ndumbi, vais aonde?

– Não sei, vou andando sem destino. Talvez vou começar procurar pássaros nos ninhos.

– Ainda espera.

Aquela voz mansa que o vento lhe convidou para tranquilizar, fê-lo parar.

– Não vai embora,espera o teu tio e explica o que aconteceu, que não deste conta quando o fogo se espalhou.

– Mas por que tenho que falar a verdade? Ele vai me pôr no castigo.

– É melhor falar a verdade que mentir. E depois, se ele descobre sozinho, não é pior?

Era a primeira conversa com Uanja, talvez fosse sua oportunidade, dizer o que sentia e se sentir livre da bola de sentimentos que se tinha infiltrado em sua vida.

– Eu tenho que ir, mas gostaria de dizer que gosto muito de você e vou um dia voltar para te pedir na tua família.

– Mas Ndumbi. Se você não consegue resolver uma maka, como vai aguentar com os barulhos da família?Você mesmo sabe, somos quase primos, por isso na nossa tradição é errado. E também, ainda somos jovens demais para pensar nisso.

Ndumbi ficou envergonhado com a última parte que ela disse, tinha apenas dezanove anos e Uanja dezasseis. As palavras entraram no seu pequeno juízo, era verdade apalavra de Uanja. O rapaz mal conseguia trabalhar na lavra, por isso é que o tio lhe deixou viver lá, ver se consegue fazer umas vinte e cinco carreiras de milho. Não tinha casa própria, como queria assim casar?

– Não importa, você mesma sabe disso, que também gosta de mim, né? Eu sei, não adianta aldrabar.

– Mas, Ndumbi, eu sei disso.

– Então, qual é a maka?

– Há muita maka, só não quero te explicar ainda. Está bem?

Ndumbi confirmou com  a cabeça que sim, triste. Uanja foi indo para casa gingando a bunda, saciando os olhos dele.

Tão logo que Uanja foi, o rapaz correu para lá, no outro lado do rio, passar a noite. E já a noite ia chegando.

A noite foi assombrosa com os gritos de outros seres, e o rio parecia que falava, tinha assim uma voz de correntes de água. Não foi fácil dormir, o sono só lhe roubou quando já o seu medo não tinha perdido o poder.

No outro dia, ficou sentado muitas horas em cima de uma mangueira. Viu Uanja vir buscar água, desceu rápido, saber se o tio tinha enfurecido por tudo que tinha acontecido.

– Uanja! Uanja!

– Você me assustou, Ndumbi. Pensei que tinhas ido tão longe.

– Sim. Pensei no que você me disse ontem, não consegui dormir. E como é? O tio está me amaldiçoar?

– Está muito nervoso, mas não te amaldiçoou. Ontem, houve uma grande reunião no kimbo.

– Por minha causa?

Uanja hesitou para falar, olhou no rio firmemente, depois abriu a boca para falar, a voz saiu um pouco tímida.

– Não, era sobre o meu alembamento.

– O quê? – Ndumbi ficou espantado, as suas esperanças tinham sido confirmadas. Ficou verde de repente, o rosto desenhou um ódio muito profundo, as mãos passaram pela cabeça,acariciando os seus poucos cabelos, preocupado com o amor que sentia pela miúda. Por que é que você nunca me disse nada?

– Dizer mais o quê? Essa é a segunda vez que conversamos, nem temos tanta amizade, o que vou explicar a você?

Ela tinha razão, os mais velhos segredavam com a miúda para não ter um rabo de conversa com ele,pelas suas acções, a riqueza da sua beleza, o modo de olhar nas moças do kimbo. 

– E quem é o teu noivo?

Ensaiou a resposta muitos minutos, só os olhos antecediam uma cruel resposta. Ndumbi ficou seríssimo, esperando a tal resposta. Uanja deu um olhar solene de tristeza a Ndumbi.

– Ndumbi, Sei o que você sente por mim. Mas não há tempo para explicar, amanhã apareça no kimbo, será o meu alembamento. Sinto muito, o teu tio é que mandou alguém queimar a lavra.

Pegou no balde e foi sacudindo as nádegas. Os pensamentos do rapaz ficaram avermelhados. Como o tio foi capaz de fazer isso?, se perguntava. A princípio, a lavra, a cubata, as galinhas, eram todas suas riquezas. Não entendeu. Depois de muitas horas, ficou ouvindo o silêncio da mata, não teve nem vontade de subir na mangueira ou procurar coisas para comer.

Naquelas mesmo momento, Ndumbi estava indo para o kimbo, o alembamento já estava no seu acentuado momento. Esperou ver quem seria o tal noivo. Não queria acreditar, antes porém as mãos e os pés se gabavam ter força para lutar com o seu tio. Agora sei por que esse tempo todo me proibia visitar o vavô Santos. Entendo também por que mandou queimar a lavra. Este filho da puta merece uma lição. O que mais importa é a felicidade dele que a dos outros. Se eu soubesse, essa Uanja a estás horas já estaria casada comigo,foi pensando tudo isso com muita raiva do tio.