O exercício de leitura é um desafio entre a consciência e a inconsciência do nosso ser. A noção de leitura não se limita a simples atitude de decodificação de códigos escritos. Ler é despir uma imagem, uma paisagem e comunicar-se com ela. É entrar em si mesmo conduzido pelo caminho da arte e ao mesmo tempo estar conectado ao mundo por meio do olhar.
Em literatura, a leitura é um processo de consciencielização além de ser fonte de prazer. Lê-se para ficar acordado, para manter os olhos abertos, para entrar em si mesmo e estar com a humanidade. Esta é uma das nossas motivações para a leitura que começamos na obra da escritora Paulina Chiziane. Reconhecemos nela uma preocupação com o libertar do homem das amarras do politicamente correcto, do que, pelo costume da prática, nos parece normal, mas que é preocupante.
A curiosidade e a sede de conhecer o fundo das várias realidades que nos cercam motivam nosso olhar e fazem-nos também questionar o valor das coisas que desejamos.
O que pode representar para nós essa obra literária que se afigura como um retrato do passado histórico de Moçambique, a imagem da África e o reflexo de Angola?
Paulina Chiziane é escritora moçambicana, nasceu em junho do ano 1955. É autora de obras “Baladas de Amor ao Vento”, “Ventos do Apocalipse” e muitas outras. Da sua galeria de reconhecimento, consta o prémio de Literatura José Craveirinha conquistado em 2003. Paulina Chiziane é retratada como uma escritora que privilegia na sua produção a marca ideológica da defesa da liberdade e a valorização das tradições africanas ao relacionar na sua narrativa relatos históricos, o valor e a sabedoria presentes nos mitos africanos.
A obra O Alegre Canto da Perdiz, publicada em 2008 é um romance histórico que retrata episódios vividos por mulheres e homens, ilustrando um modus vivendi dos tempos do passado da época colonial e avançando com um olhar diverso aos tempos de hoje.
Do ponto de vista formal, essa obra constitui-se de 35 capítulos. O romance tem como situação inicial um enredo no qual uma mulher nua é vista pelos homens e mulheres da aldeia. Os homens e as mulheres, principalmente as mulheres, sentem-se ofendidos pelo sucedido e apedrejam a mulher nua na margem do rio, num monte. A mulher nua responde a todos apenas com sorrisos. A mulher nua é Maria das Dores, descrita como uma mulher de alma quebrada pelas circunstâncias da vida, pela ambição dos homens e mulheres e por muitos problemas mencionados no percurso da diegese.
Esse enredo que constitui a abertura da estrutura diegética desta obra é introduzido como uma prolepse, consistindo, nesta adequação, como a antecipação de um dos muitos enredos que constituem a história para depois dar continuidade, desenvolvendo-se a narrativa pela narração e descrição da trajectória de Maria das Dores, começando do percurso histórico de Delfina, uma das protagonistas.
A história é contada através de um narrador heterodiegético do ponto de vista da presença no romance e intradiegético do ponto de vista da voz que, pelas suas capacidades de omnisciência e subjectividade, sabe ler a alma das personagens e tece reflexões sobre elas, tornando a leitura num campo de debates entre as ideias objectivadas no romance sobre o proceder do universo operatório e obrigando o leitor a tomar um posicionamento a respeito do que lê.
Maria das Dores é um nome belíssimo, mas triste. Reflecte o quotidiano das mulheres e dos negros. (..)
As vozes da multidão ululam furiosas como uma onda. Era a superstição e o medo aliando-se como fios da mesma corda. Punhados de areia caem no corpo da mulher nua como chuva de granizo. O seu peito incha com a força do medo. (p.7)
Faz-se recurso ao diálogo como forma de representação do discurso que muitas vezes é resumido pela intervenção do narrador no interior do diálogo. Sendo que a narração é muitas vezes apresentada, ligando-se ao diálogo.
O que comes. Quem te mata, quem te tortura. Gotas de luz se acendem tímidas no rosto de Maria. A voz da mulher do régulo é o remédio doce que lava as feridas da solidão. Ela respondeu a todas as perguntas com um sorriso. — Onde dormes, Maria? — Eu? Ela deve dormir ao relento, no abandono total dos desprovidos de terra. Deve ter a mente povoada de dragões, dinossáurios, paisagens medonhas. (p.13)
A história vai se desenrolando, explicitando a maneira como se traçou o destino da personagem Maria das Dores. Vamos nos deparar com personagens como Delfina, Serafina, José dos Montes, Jacinta, Soares, Simba, todas elas com um lugar de destaque na vida de Maria das Dores e com sua relevância na estrutura diegética, representando sempre uma imagem das várias condições a que muitos homens, mulheres e crianças foram submetidos. Vamos aqui nos ater a figura de Delfina, mãe de Maria das Dores. A vida de Delfina foi de sofrimentos e turbulências existenciais. Anseios e egos. Vítima das circunstâncias, Delfina se prostitui à mando da mãe Serafina para garantir sustento da família. Mais tarde, Delfina vê na beleza e no sexo a oportunidade de fuga da pobreza e para ascensão para uma classe de prestígio no tempo colonial, que era a de assimilado. Delfina desenvolve uma visão do mundo que acredita na superioridade do homem branco e vê-se na ânsia de se tornar numa branca, sacrificando tudo a sua volta pela riqueza e pela cor. Desprezando e fazendo de Maria das Dores escrava, chegando ao ponto de entregá-la ao estupro por um feitiço para ganhar mais dinheiro. É um quadro da sociedade colonial da época.
Mas como é que tudo começou? Começou ou terminou? Na vida nada é princípio, nada é fim. Tudo é continuidade. Mas tudo começou no dia em que o pai negro partiu para não mais voltar. Tudo começou quando o pai branco amou a sua mãe. Tudo começou quando nasceu a sua irmã mulata. Tudo começou quando a sua mãe vendeu a sua virgindade para melhorar o negócio de pão.
Tudo começou com uma relação que envolvia sexo e amargura. Filhos e fuga. Torpor e ausência. Escalada de uma montanha. Soldados brancos na defesa do império de Portugal. Dinheiro e virgindade. Magia. Fortuna. Lembra-se de tudo, da terra e do mundo. Onde a cultura dita normas sobre homens e mulheres. Onde o dinheiro vale mais que a vida. Onde o mulato vale mais que o negro e o branco vale mais que todos eles. Onde a cor e o sexo determinam o estatuto de um ser humano. Onde o amor é abstracção poética e a vida se tece com malhas de ódio. (p.12)
Delfina é das personagens que mais suscita a curiosidade da observação. É por meio da sua imagem que são apresentados vários conflitos de personalidade, a influência que as vivências do passado causam ao ser. A partir dela, se intensificam as ideias do pensar por si, do direito a reivindicação da própria liberdade. Representa também o futuro que as escolhas atraem. A personalidade de Delfina é um constraste a significar, em certos casos, as várias faces da humanidade.
As personagens são caracterizadas de forma mista, ora directa ora indirectamente. Os factos se desenrolam por encaixe, na Zambézia, localidade de Moçambique, num momento de ocupação colonial. Os acontecimentos decorrem num ambiente de conflitos raciais, desigualdades sociais, relações de género. É uma narrativa fechada.
O tom expressivo com que são narrados os factos e descritas as personagens varia entre o sereno e o agressivo por consequência das críticas que as ideias estabelecem para os sistemas sociais. A autora não mede as palavras para criticar tanto a homens como mulheres dos actos que desestabilizam a personalidade humana. Nota-se nesta obra uma defesa da liberdade e da harmonia entre os humanos. A liberdade é, desde os tempos da escravatura, o sonho dos homens e das mulheres. A liberdade foi conquistada, mas ainda contitui sonho, “acende-se na mente o sonho de liberdade” (p.32), porque os problemas sociais, as ideologias políticas, o anseio pelo poder, os sistemas de governação, fazem do ser humano um indivíduo não totalmente livre, mas oprimido. As noções de união e de harmonia precisam de clareza e cultivo. Por isso a autora luta com a arma da palavra.
” defende a liberdade humana e não sistemas formatados por modelos importados com ideias de supremacia, nem o mundo material dos mortos que gritam comandos à vida nas vozes das conchas. Em todos os regimes há condenados nas celas e velhos esfomeados calcorreando o mundo em cada sexta-feira de esmolas. Em cada regime há gente comendo lixo, dormindo ao relento, congelando ao gosto do orvalho nas madrugadas frias. Há também ganância pelo poder. E lutas. E sangue. Marxistas. Colonialistas. Socialistas. Comunistas. Masoquistas. Lutando pelo poder nunca conquistado e por dominar o povo unido que jamais será vencido” (p.86).
Trata assuntos diversos do quotidiano, que advêm dos tempos desde o colonialismo e que se eternizam pelas mãos de homens e mulheres (não há inocentes na história da destruição do mundo). Dos assuntos existenciais, mitos sobre a origem do mundo e do ser humano. Da descoberta da diversidade da existência, passos do colonialismo europeu, racismo, relações de poder e conflitos de interesses motivados pelo ego, conflitos existenciais internos ao homem, prostituição, venda de menores e outros, configuram-se como temáticas desse romance narrados e descritos de maneira ousada e aberta, sem rodeios nem receio.
Essa obra traz nas suas páginas, histórias de como a vida de muitas mulheres se desdobravam desde os tempos da escravatura, colonialismo e até a actualidade. Mas o mais curioso é como Paulina Chiziane dedica um capítuloo curto para descrever a origem das lutas entre os homens e as mulheres. Das suas lutas e dos sofrimentos, fazendo recurso a sabedoria africana presente na estrutura dos mitos.
As lendas antigas se reproduzem e se materializam. Lendas dos tempos em que Deus era uma mulher e governava o mundo. Era uma vez…
Há muito, muito tempo, a deusa governava o mundo. De tão bela que era, os homens da terra inteira suspiravam por ela. Todos sonhavam fazer-lhe um filho. A deusa, tão maternal e tão carinhosa, jurou satisfazer o desejo de todos os homens do mundo. Mandou dizer, pela voz do vento, que numa noite de lua haveria dança. Que ela desceria à terra no seu carrossel dourado para que as mãos humanas pudessem, finalmente, conhecer a macieza da sua pele. O momento chegou. Banhou-se, perfumou-se e usou os melhores unguentos. Subiu ao pico dos Montes Namuli, tirou o manto e dançou. Nua. Para que todas as mulheres invejassem os seus encantos. Chamou os homens um a um e agraciou-os com a divina dança. Engravidou de apenas um, afinal não tinha poderes para parir o universo inteiro. A descoberta dos seus limites foi fatal. Todos ficaram a saber que afinal a deusa era uma mulher banal e o divino residia no seu manto de diamantes. Descobriram ainda que era feita de fragilidade e tinha a humildade de uma criança. Os homens sitiaram-na. Roubaram-lhe o manto e derrubaram-na. Tomaram o seu lugar no comando do mundo, condenando todas as mulheres à miséria e à servidão. Esta é a origem do conflito entre o homem e a mulher. É por isso que todas as mulheres do mundo saem à rua e produzem uma barulheira universal para recuperar o manto perdido. (p.111)
As questões existenciais em torno da raça mais visualizada na personagem Jacinta permitem relacionar essa obra com um poema de Francisco José Tenreiro com o título “Canção do Mestiço”. As duas realidades dialogam em complementaridade, uma questiona, outra constrói uma explicação para o caso do ser “mulato”.
Vários incidentes marcaram a vida de Jacinta. O maior deles aconteceu quando passeava pelas ruas da cidade com as suas colegas de escola. Viu o pai a entrar num edifício enorme, com muitas escadas. Ela espevitou-se e entrou. Procurou-o nos gabinetes, corredores, gritando alto pai, pai, pai, com a liberdade de qualquer criança. Quando o viu, saltou-lhe aos ombros plena de felicidade. O homem que falava com o seu pai perguntou:
— Quem é essa pretinha? O que faz ela aqui? O pai corou e respondeu encabulado. — É filha de uma amiga. Uma africana. (p.125)
O poema de Tenreiro deixa clara uma ideia de como era difícil na época colonial e um pouco mais tarde a confusão de identificação em que se encontravam as pessoas desta condição.
Mestiço!
Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.
(…)
A partir do título, é possível perceber a sua dimensão simbólica, e não somente por isso, mas também, como anteriormente referimos, pela sua relação com narrativas mitológicas para explicar o mundo.
Reveste-se de alto valor cultural por conjugar, na sua estrutura diegética, histórias de mulheres, relacionando as mesmas com as estruturas dos mitos africanos sobre a origem do mundo, construindo, assim, uma relação de dependência e complementaridade entre as estruturas e quiçá, por analogia à expressão da dependência entre homens e mulheres. Por defender a liberdade, a alteridade e a tolerância como valores que sempre se devem cultivar. Todos esses elementos conjugados num dinamismo característico, sensibilidade e expressividade subjectivas à autora.
Essa obra pode representar, para nós leitores e cidadãos, uma oportunidade de reanálise do rumo que o mundo toma. Um problema atrás do outro. O valor da vida, o direito à liberdade que também consiste no poder de escolha, a promoção da união e da harmonia entre visões divergentes deve ser sempre repensada.
O seu valor filosófico impregnado na forma de discorrer sobre a análise da condição humana constitui-se como um factor importante na formação de potentes leitores para as diversas situações de tomada de posição sobre diversas realidades sociais.
Paulina Chiziane oferece-nos uma obra de importante valor social na medida em que expõe questões que ainda perduram nas sociedades modernas como os conflitos de interesses, relações de poder, abandono de menores, opressão, manifestações discriminatórias gritantes, intolerância, violência, doenças graves que infermam as relações humanas e deterioram a humanidade ao ponto do ser humano pensar em projectar uma fuga à Marte. Mas não é possível fugir de si mesmo. O ser humano precisa confrontar-se a si mesmo, o que podemos alcançar com a meditação e avaliação da nossa personalidade e do nosso agir no mundo.
Pela abrangência e actualidade que a caracteriza, a obra “O Alegre Canto da Perdiz” é um desafio constante no exercício de leitura e interpretação. Por esta e outras razões, essa leitura pretende-se um ponto de partida para futuras abordagens.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHIZIANE, P., (2008), O Alegre Canto da Perdiz, Editorial Caminho.
www.escritas.org/pt/t/8501/cancao-do-mesticoAcessado em 20/02/2021.