O último cliente

Entrou às pressas no Terraço. Do outro lado, o clima suspeitava a chuva. O vento, assaltando as coisas menos leve. Ou uma cueca, uma sombrinha, uma embalagem, um papel de jornal, um penso, um fio de pentelho natural ou artificial a ser arrastado nas bermas do espaço próximo aos céus.

Os pipitos das pardalocas silenciavam-se nas ninhadas dos coqueiros. Os andorinhos jamais eram vistos, era natural que ouvissem a natureza como se humanos poetas, pu(e)tas e punhetas lendo poemas de Kaz e Ibinda. As horas passavam às pressas, eram consumidas pelas unidades mínimas de tempo.

No ar, o céu rasgava-se aos pedaços ao mesmo tempo que se dissolvia de estado gasoso para líquido. «Ai meu Deus!». Era normal que se temesse viver naquele instante.

O néon do único restaurante ainda aberto em Viana reluzia cada nome dos kitutes da terra. As músicas nos dedos do discjockey morriam selectivamente no espaço que exigia mínima sonoridade de decibéis.

Não lhe era estranho o local que visitara há meses na companhia das amigas nguendeiras – que têm vício por farras.

Dirigiu-se num canto e assentou-se isolada, com o rosto relegando companhia. Tirou da carteira um flayer e fez sinal a um dos empregados encarregues de servir os poucos convidados que se já encontravam no bar, e pediu o cardápio. Era de se esperar que poucos mais viessem, pois o clima não oferecia esperanças.

– Desculpe, dona, por termos esquecido de meter o seu com antecedência.

Ignorou a explicação e questionou o nome e a aparição do músico convidado, sendo que foi garantida estar no lugar certo para se agradar aos ouvidos, porcaria que lhe pouco interessava.

– A propósito, o que se lhe apetece degustar? – Seguiu-se.

– O prato da casa com sumo natural de múcua.

Mal terminara, ouviu a bruaá pelos homens que subiam no palco. Ou alguma coisa improvisada à sua semelhança. Seguiu-se o afinar de um violão solo com cordas de nilon e uma guitarra baixo. A arrumação da bateria e o ensaiar da puita. A adaptação da sonoridade de uma marimba e os botões do piano. Os tambores de percussão e as gaitas. O reco-reco e o batuque. Um parecer de ritmos d´África ocidentalizados. Um tim pra mi, um trem pra acordos de sol sustenido com baixo de si. De repente, eram músicas no ar espalhadas pelos instrumentos que tocavam sucessos antigos em versões de jazz. De seguida, seguiram-se mais bruaá repleto de assobios e brados pela subida do músico da noite que vinha em companhia da AZULULA do fantástico músico Gabriel Tchiema.

– É um grande saxofonista, conheço-o há anos. – Ofereceu-se alguém aos comentários.

– …meu amigo. É meu amigo.

– Toca melhor que muitos que vimos repetidas vezes nos grandes eventos…

– De elite. Querias tu dizer! – Completou a ideia um dos jovens que se assentava na mesa próxima a que estava aquela mulher de quase trinta anos que dividia a atenção entre o palco e os falantes ao lado.

O ar de fora era transportado para dentro onde se misturava com cada nota das músicas com a máxima naturalidade.

A música soprada pelo saxofone transportava luz e paz. Apaziguava os espíritos conflituosos com poderes oniromantes. De repente, a quarta. Como nunca, LOST de Michael Bublé era perfeita. Cada ouvido fora convidado a não fazer gestos. «Uma noite perfeita não se sonha, vive-se quando procurada nos lugares mais amenos. Quando o destino não te dá o mundo que almejas, é normal inventá-lo», pensou.

Cada música era um sonho. Ainda que refeita, soava ao original. A solidão jazia-se com desprezo. A vida, à noite, às manhãs, apenas demoram em convívios enfadonhos onde os homens comidos pelos corvos apodrecem ainda em vida.

A madrugada antecipava-se cansada. As vidraças, embaciadas. A música anunciava seu repouso e encerrava-se amena em Umbi Umbi.

Um toque brusco no ombro convidou-a que se virasse. Pensou em verberar algum discurso impropério ao menino de, talvez, dezanove anos, mas hesitou. Nas mãos, um papel mal rasgado implorando seu terminal telefónico.

– A pedido do senhor que está na penúltima mesa do seu lado esquerdo.

Recebeu. Tirou da bolsa o lápis de maquilhagem e rabiscou uma sequência de nove algarismos. Virou-se para devolver, mas viu-se isolada. Relegou-se no assento e concentrou-se no palco. Poisou o papel e pensou em desfolhá-lo ainda embrulhado. Segurou-o e resolveu folhar antes a fim de riscar o contacto. Sorriu levemente: «Espero-te depois que terminares de ouvir esta música. Estacionamento 3. Lada preto de matrícula LY-689-VP. Não resisti».

Apoiou com leveza as mãos ao pescoço e abanou a cabeça. Virou-se ao completo estranho, como quem nada quisesse e sorriu com leveza.

Da plateia, ouvia-se pedidos de se vir a repetir Umbi Umbi. «A boa arte tem dessas», ouviu alguém comentar. E repetiram-na por cortesia.

Levantou-se e pagou a conta. Deixou o local talvez pensando na sequência de uma noite contínua da qual o amanhã pertencia a Deus. «… Estacionamento 3…», pensou, caminhando. Abriu a porta do Lada, e seguiram viagem.