Quadro orgânico itinerante

A miséria é um quadro pintado a mil mãos. O resultado é uma mistura entre o surrealismo, dadaismo e afins. Todavia não se conhece obra tão real quanto esta. Os pintores da miséria são artistas insensivelmente habilidosos. Os outros, os demais, a maioria são o público comum: os patrocinadores da obra. Os devotos mecenas da precariedade.

Um dos personagens do quadro é o meu irmão Kapiloso. Enquanto esboçava, ele gritava, debatia-se, parecia querer soltar-se… Terminada a pintura, o grito transformou-se num riso largo, e as tentativas vãs de debandada foram redesenhadas. Ele já parecia gostar do seu lugar no quadro.

Kapiloso portava um corpo absurdamente esqueletivo, exibia um andar vago e errante e lançava ao mundo um olhar anestesiado. Um autêntico contraste confirmado por um recuo cronológico. No quadro, a beleza do meu irmão não aparecia nem nas entrelinhas. Não havia conceito subjectivo do belo que o salvasse. Ele era o Quadro dentro de um quadro. Nem a luz artificial da galeria podia condicionar uma leitura favorável ao enigma Kapiloso.

Separado do Kapiloso, por uma pincelada, estava a Nguevinha. Ela nasceu na mesma rua e época que eu, no bairro dos Eucaliptos, periferia da capital do Namibe, que até antes da década de 80 do século passado era praticamente desabitado. Montes de areia desenhavam o nosso berço. O tempo passou desde a altura que a nossa terra era um autêntico areal. Hoje é um espesso lamaçal, nas raras ocasiões de chuva, e a Nguevinha é mãe de oito filhos. Uns, descalços e empoeirados, vagam pelas ruas do bairo e outros, zungueiros de saco preto, na pracinha do Kapeke. O mais velho, com menos de 16 anos, é açougueiro. Dizem que em cada amontoado de crianças que se encontre a brincar pelo bairro, há, no mínino, um que seja filho da Nguevinha.

Nguevinha aparece descontraída no quadro, com um riso que tenta a todo custo abafar, um bebé ao colo e outros seis filhos, com excepção do mais velho, comendo no óbito da falecida avó Ana. Era um momento de rara fartura para a sua família. Que lhes perdoassem os que estavam de luto e os anjos que conduziam a anciã  na sua nova jornada, mas aquele era um dia de muita felicidade para ela e os seus rebentos.

Antes que meus olhos pesassem e cedessem ante a culpa, vi o Man Tu. No quadro ele não era mais pedreiro, já aparecia como pescador desafiando a  imensidão do azul marinho para pôr comida na mesa, (por mesa, entenda-se pratos suportados pelos joelhos, dele e de cada um dos seus filhos). O pobre coitado não possuía uma cadeira sequer, quanto mais uma mesa?! Man Tu enfrentava a furia do mar numa canoa feita de esferovite e pedacinhos de madeira, provavelmente expelidos pelas ondas depois de terem naufragado uma outra embarcação qualquer. Certa vez ouvi que quando foi questionado sobre o facto de se fazer ao mar sem experiência nenhuma, Man Tu foi categórico na resposta: “Dói mais morrer de fome do que morrer no mar. E ter de lidar com os olhos suplicantes e acusadores dos meus filhos é outra merda bué díficil, torna-me ridiculante impontente. Tenho muito medo do mar, mas tenho mais medo de lidar com a fome dos meus putos. Se a minha eu não consigo driblar, imaginem a dos cassules? Faz-me parecer um herói patético, que se debate em vão, sem forças para proteger quem é torturado diante dos seus olhos. Que a morte me encontre na calada da noite, na imensidão do mar, haja como cobarde que é e me subjugue com a bênção do olhar conivente das estrelas”.

Propala-se que o caos seja definitivo e com um bonus de requinte. Os artistas, subsiados pelos nossos impostos milionários, tutorados por teóricos da má gestão da coisa pública e da sobrefacturação, têm estado a aprimorar técnicas avançadas na busca pelo quadro perfeito para representar a miséria contemporânea ominipresente. E o tema para o quadro? Tez, padrinho na cozinha, opotunidades desiguais, cabritismo e outros males.