Qual a função do som no cinema? Sandra Mateus sabe como responder

Para que serve o som no cinema? Arrancar lágrimas? Causar tensão? Provocar risos ou sustos? Narrar um acontecimento? Expressar um movimento, quer seja para acelerar ou retardar uma cena? O certo é que o som constitui uma ferramenta para o sucesso ou fracasso de uma obra cinematográfica. É assim que Sandra Mateus introduz e traz à tona a questão do som no cinema, no seu recente livro “Função do Som no CinemaPalavra&Arte foi ter uma conversa com autora que usa uma linguagem simples e aberta no livro que tem como pano de fundo nada mais que The Artist (2011), um filme atrevido que trás o cinema mudo a preto e branco para os tempos modernos.

O que está mais em destaque no livro, a sonoplastia ou o cinema em si?

A sonoplastia não está mais ligada com o livro. Porquê? A música, o som, são algo que encantam no cinema, mas o foco do livro é o cinema. O som, no cinema, é um aspecto muito interessante, mas poderia falar de um outro elemento, como a fotografia, ou a iluminação. Acabo por falar do som pela influência que teve na minha vida, porque me apareceu primeiro enquanto pesquisadora.

Mesmo enquanto pesquisadora, haverá espaço para outras abordagens?

Com certeza. Olha, Angola está a crescer e de alguma forma estamos todos a contribuir para esse crescimento, embora ainda não estejamos avançados como o que é escrito em outros países, em termos de cinema ou televisão. Não olho muito pelo produto em si, seja para televisão, cinema, mas nós não temos ainda produção suficiente de conhecimento, de manuais para se formar esses produtores. Não temos ainda bibliografia nacional para se formatar ou criar uma literatura nossa virada para o cinema, então é basicamente por aí.

Neste caso, o livro que traz pode servir tanto aos académicos como aos cineastas? (Ou para quem é indicado o livro?)

Com certeza, mas o livro não fala de técnica, não fala de, por exemplo, como amplificar o som ou de equalização para quem trabalhar com o som. Fala de alguns termos científicos, mas depois coloco-os numa forma simples, ou seja, dou uma explicação do que é aquilo. A linguagem que uso no livro é para quem gosta de cinema. Não está restrito ao profissional. Há alguma abertura até para o amante desta arte, por causa da influência que o som tem sobre nós. Não muito como som é inserido no cinema, que é outro aspecto e que seria direccionado para quem trabalha com o cinema ou tenciona. Ele é para o público em geral.

Há alguma abertura nas abordagens do livro para o uso do som em outras formas de arte, como no teatro?

Sim. Pode se ter alguma apreciação para o lado da televisão também. No teatro, se calhar, pode ser um pouco mais perigoso. Tenho algumas noções, não todas, trabalhei com o teatro por algum tempo. Lá o som tem grande importância. Ao contrário do cinema, no teatro, os actores esforçam-se mais para transmitir a “informação”, em termos de representação e em termos de efeitos também. Há efeitos que nós podemos produzir que, no teatro, não se consegue com mesma precisão como no cinema. O teatro vive do som, além da representação.

O que a Sandra quererá nos apresentar trazendo um livro com esta temática?

Este tema é aberto. Para mim, chega a ser intolerável ou talvez triste, porque, trabalhando com o cinema, fico, de alguma forma, nervosa quando vou a uma sala cinema e noto que as pessoas ficam simplesmente em “esse filme é com Johnny Deep! Oh, é com Fred Costa! O realizador é o Steven Spielberg!”. Nunca, em nenhum momento, se toca no som. Ele é simplesmente ignorado. Acaba por ser como tanta coisa importante na vida, as pessoas fazem-nas tão bem, que, de tão habituadas e de tão natural que é, simplesmente as deixam em segundo plano. Não dão relevância. E o filme que analiso no livro vem mostrar isso, ele é cinema-mudo e depois chega numa parte em que é inserido o som. É a questão do hábito que nos faz esquecer a importância.

De que maneira a Sandra vê que o som trabalha o estado emocional do publico?

É de uma maneira mágica. Ele pode acordar emoções mais tristes, estados de espíritos mais alegres, mansos, e agressivos. Dá, muitas vezes, sentido ao filme. O som acaba também por determinar se o filme é suspense ou não, é responsável por acelerar o nosso batimento cardíaco, não é o efeito câmera com um individuo a abrir a porta de forma lenta, sem diminuir esses elementos. Perde-se todo esse encanto ao ver um filme de terror, por exemplo, ou ao ver duas pessoas num restaurante a conversar durante 24 horas, sem este elemento. Sem o som, não se determina se há um clima romântico entre essas pessoas. Ele é um auxiliador da narrativa.

E o cinema-mudo, um elemento do filme analisado no livro, consegue passar o mesmo estado emocional?

Uma boa questão, porque, mesmo no livro, eu falo do suposto cinema-mudo. É para dar atenção ao termo “suposto”, porque eu prefiro acreditar nos pensadores que delimitam as sétimas artes em cinema falado e cinema não falado. Há uma diferença entre cinema sem fala e cinema-mudo. Até mesmo as primeiras exibições do cinema feito pelos irmãos Lumiére não eram absolutamente mudo, continham uma orquestra a fazer parte do espectáculo. Portanto, não posso considerar “mudo”, quando na verdade há uma trilha sonora. A mim não interessa muito como era inserida, se era a partir de uma máquina que passava, ao mesmo tempo que se projectava, porque é a mesma energia que se tem agora. A maior parte dos efeitos nem sequer é efeito com os elementos reais. Vai-se ao computador, consegue-se algum resultado. A inserção da música sempre foi uma necessidade do cinema. Portanto, mudo mesmo não me parece.

Mas não me atreveria a confrontar indivíduos que passaram grande parte do tempo dizendo que é mudo, atrevo-me é a sugerir às pessoas a pensar se o cinema era mudo ou cinema sem fala.

Que critérios usou para selecção do filme e porque The Artist?

Este filme é muito importante. Eu tinha vários filmes com que podia trabalhar esse tema. Os outros falavam de música, de efeitos sonoros, mas este foi um em particular, pois ele fala da história do cinema, da história da inserção do som no cinema e consegue transmitir, a partir dos personagens e de toda realização, a importância que o som pode ter para o cinema.

Não é só um filme a falar de som, com boa banda sonora ou com bons efeitos, mas fala daquilo que pretendia no livro que é a importância do som no cinema, portanto, quando o vi, era como se encontrasse facilmente algo por que andei a lutar por tanto tempo, ele era exactamente aquilo que queria retractar no livro. Enquanto eu retracto essa importância em palavras, o realizador fê-lo em imagens.

De alguma maneira, acha um pouco radical essa ideia do director Michel Hazanavicius em trazer uma linguagem própria dos anos 20 e 30, que é o período retratado no filme?

Não. Se calhar, dizer assim ou não, seria… Talvez tenha sido radical, mas sou a favor desse radicalismo, porque eu não gosto de repetições, o que toda gente faz. E quando digo não gosto é porque a diversificação é o melhor que há. Os diferentes são os melhores e, então, trazer um filme mudo e a preto e branco em 2011…

Quando parei para ver este filme, já estava farta de ver tantos. O que me fez parar foram mesmo estes aspectos, pois 2011 não é o tempo desse tipo de cinema.

O próprio Michel  passou por algumas críticas, mas também havia um número de pessoas que facilmente aceitaram, e considero-me parte de um grupo de pessoas que é fã desse radicalismo.

Com isso, sugere que possa surgir uma espécie de vanguarda para esse tipo de cinema?

Olha, não sei muito bem. Talvez não deva dizer isso assim agora. Por acaso, há projectos em que nós, eu e alguns antigos colegas do curso de cinema, estamos a trabalhar o filme assim, não bem a ideia total do The Artist, mas do preto e branco. Porque um dos aspectos que me encanta nesse filme é o preto e branco ser feito em 2011, coisa que muita gente, desde os nascidos em 90 ou mesmo em 80, não vê, seja por uma questão de interesse ou por outro motivo.

Ressalvou até aqui a questão do som. Gostaria de saber que interpretação faz da narrativa do filme em questão?

A narrativa não tem muita coisa por se analisar, não por ser vazia, coisa que não é verdade. Mas por ser um filme que retracta uma certa realidade. É como uma história que já existe por se poder encontrar, de alguma maneira, na história do cinema.

Trazendo o livro, como anda a representação do som no cinema nacional?

Seria perigoso falar já do som, porque cinema nacional ainda está mal, sem desvalorizar nenhum trabalho, mas ainda falta mudar muita coisa. Falta crescer em vários aspectos, e o som é só mais um deles. Até poderia mencionar cada elemento mas depois pararia de pensar que o problema, afinal, não é só o som, afinal não é só representação, afinal não é só edição ou o câmera. Então para falar do som, teria de falar do cinema e nós não estamos parados.

Eu acho que a quantidade também faz falta, portanto não critico ninguém que esteja a produzir ou a projectar filmes, pelo contrário, dou meu incentivo e sempre que puder vou lá acompanhar mesmo consciente de muitas situações que deviam ser melhoradas para o crescimento destes. É quase uma responsabilidade incentivar o indivíduo que se dispôs a fazer, a aprender. Quando faço isso, acompanhar os filmes nas salas de exibição, procuro falar com eles, de aspectos que podem ser melhorados. Mas, de forma resumida, o nosso cinema está em crescimento, mas há muito tempo, e, acredito que precisemos, realmente, de produzir; por um lado, produzir em quantidade, por outro é produzir com melhor qualidade, e quando digo qualidade não se trata somente de equipamentos, trata-se da formação, do fazer as coisas com maior orientação, maior conhecimento, porque há filmes, hoje, que são feitos até com smartphones, há festivais de curtas-metragens para isso, inclusive.

Então, qualidade é não tão-somente o equipamento – ressalto – é como conseguimos fazer algo que possa ser interessante.

De que maneira pensa que o livro está alinhado às necessidades do cinema nacional?

De uma maneira profunda. Explico: acabei de dizer que o nosso problema não passa somente pelo equipamento, o problema é com a formação, a capacitação para os indivíduos que vão fazer cinema, e mesmo todas as outras pessoas, apreciadores ou não de cinema. Portanto, a dificuldade está aqui, e as mensagens que estão no livro servem de maneira educacional.

Eu disse há pouco que o cinema faz-se por um conjunto de pessoas a trabalharem, mas ele acontece com os indivíduos dispostos a produzirem manuais para orientar essas pessoas e os indivíduos que estão dispostos a aprender. Hoje, uso o exemplo do Brasil: há um número de conteúdos sobre cinema encontrados na internet, e muito dos fazedores brasileiros têm buscado bases nela, e através dela também conseguem expandir o trabalho de quem já fez.

A mensagem é essa: orientar. Por mais que seja autodidacta, existem algumas regras para se fazer as coisas. Há pessoas que perderam dias e anos na universidade ou trancados em uma biblioteca para pesquisar e chegar a uma conclusão.

E como anda a produção de conteúdo nas nossas academias, por quem já esteja a estudar ou pesquisar?

Não há uma produção de conteúdo acentuada sobre cinema nacional nas academias. E não é por falta de capacidade, mas por falta de interesse daqueles que são os académicos. Pois, um indivíduo que tenha passado mais de quatro anos na academia e se diz não estar capacitado para escrever um livro, faz-me perguntar: teve ou não a capacidade de fazer a monografia ou pagou a alguém para isso? Teve a capacidade para estar numa conferência, num workshop a apresentar trabalhos? – Embora sejam formatos diferentes. E a produção de manuais não é um trabalho individual, há também nela uma equipa para isso. Só é preciso que os académicos produzam, e a responsabilidade passa também pelos profissionais, pois há editoras que podem complementar esse trabalho que começa com a produção.

Quando me surgiu a intenção de produzir o livro, orientação de como se faz o trabalho de publicação de um livro.. Tive de aderir mesmo à internet, pesquisar coisas que explicassem como fazê-lo e ao mesmo tempo ia fazendo contactos com editoras, tudo para compreender o processo.

A Sandra arrisca-se a mencionar um mínimo de duas produções nacionais que conseguem esse estado de cinema “interessante”?

Fazer essa menção é um trabalho muito difícil, há vários aspectos que mereceriam destaque. Ao que estamos a produzir actualmente, basicamente citaria Rainha Ginga, da Semba Comunicação, que eu acho que esteve bem desde a iluminação à caracterização, mas não queira dizer que não tenha havido aspectos a melhorar. O Independência, da Geração 80, é um documentário que acho que também foi bem feito desde a ideia original, a narração, à sequência de imagens que despertam interesse. É um documentário que o público assistiria por ser interessante a maneira como é narrada a nossa história.