“SAGRADA ESPERANÇA” DE AGOSTINHO NETO «“O ser, o Não-Ser e o Quase-Ser” resume a poética de Agostinho Neto.»

(Em comemoração ao dia de António Agostinho Neto)

«“O ser, o Não-Ser e o Quase-Ser” resume a poética de Agostinho Neto.»

Seja-nos permitido dizer desde já que não falaremos do “valor literário” da obra de Agostinho Neto, porque a valoração de uma obra literária é altamente subjectiva. Seria de uma arrogância extrema, se, particularmente, nos detivéssemos a analisar a obra de arte através do seu valor. A Arte regula-se a si própria, pelas suas leis. Com isso, queremos dizer que a avaliação de uma obra literária é produto da interpretação individual. A esse respeito, Ifor Evans previne:

ao discutir obras recentes de literatura os juízos têm necessariamente de assumir um carácter provisório uma vez que não têm certeza de quais delas sobreviverão ao tempo”.

Diversas vezes, há tendência de se confundir o homem e o artista. Aqui queremos separá-los. Não falaremos de António Agostinho Neto ¾ O homem ¾, condicionado pelas suas fragilidades temporais e humanas (salvo se houver necessidades para isso). Mas, do Agostinho Neto ¾ O poeta ¾ ,“guia imortal” e da sua poesia.

É-nos importante assegurar uma série de aspectos que achamos pertinentes na poética de Agostinho Neto. Tais aspectos nortearam a nossa reflexão. Nomeadamente: a relação do poeta com o universo; a relação entre o Eu-poético e as condições da época; o Eu-negação, neste caso, o poeta carente dos grandes motivos vitais, «Niilismo temático».

Agostinho Neto projecta-se além do espácio-temporal com a sua poesia. Ele transpõe a efectividade do tempo que Eudoro de Sousa aponta nestes três elementos: alteração, metamorfose, transfiguração.

Nas páginas escritas, vemos o desabrochar de uma consciência libertária traduzida no amor total à humanidade. Mas, mais que simples versos enfileirados, brota delas, em interminável fluxo, a seiva, a áscua que acenderam o facho da Revolução. Talharam caminhos para a construção da Nação.

  1. A RELAÇÃO DO POETA COM O UNIVERSO.

Agostinho Neto representa o Ego-universo. Ora é parte do universo, ora torna-se o próprio universo numa relação tras-consubstanciada, por vezes, na animosidade aos acontecimentos externos, outras vezes, na sinergia interior que brota da “esperança” de querer “descobrir a vida”. Desta forma, Neto apresenta-se como o “verdadeiro Cristo”, o salvador que acabará com a segregação originada pela “escravatura”, que levará “brancos” e “negros” à grande fraternidade:

“ (…) Sou o verdadeiro Cristo da Humanidade (…) ”

Numa linguagem evocativa, propõe-nos a contemplação do universo com suas múltiplas singularidades, mas, acima de tudo, com suas imperfeições.

É no ritmo e na imagem, que Agostinho Neto se encontra com o homem. São estes elementos que o guiam na partilha das vibrações, das disposições internas, de um estado de espírito.

Diferente de muitos outros poetas angolanos, Agostinho Neto tem uma extrema capacidade de introspecção da situação por ele apresentada, poeticamente correcta. É este estilo introspectivo que caracteriza a sua obra. É, exactamente, o que define a poesia, como um estado de espírito. «É ciência da alma», como nos diz Rasoul Ganzatov.

O escritor vê diversas vezes o seu habitat a ser invadido por homens pretensiosos que não querem senão subjugar povos em nome de uma “civilização superior” e excludente que impõem padrões morais. São as utopias que o mantêm vivo, e fazem-no “reagir às decepções”, como diz Carmen Secco.

É neste espaço real, cada vez mais discriminado do que o irreal, onde o eu-lírico habita, onde os objectos mutáveis e as forças irresistíveis colidem com o seu mundo interior.

  1. A RELAÇÃO ENTRE O EU-POÉTICO E AS CONDIÇÕES DA ÉPOCA.

O poeta do “Havemos de voltar” foi fiel intérprete da realidade que se desenrolava na metrópole e em outras paragens. Porém, não podemos vê-lo como um historiador, pois não o é. A poesia não é historiável. Não deve ser estudada como se de narração se tratasse. É muito mais do que isso. O tempo continua a escrever, nas entrelinhas dos poemas, “novas poesias”. Não queremos dizer que não haja nada em comum entre história e poesia.

Já dissemos que a característica efectiva do tempo é de alterar, metamorfosear e transfigurar. Mas cabe à poesia “o poder de alterar, de transfigurar, de metamorfosear”. Faz parte da sua “virtude” e não da “história”. Um exemplo é que a leitura de Neto pode, ao longo do tempo, gerar outras poesias.

Numa poesia realista, sem quase qualquer simbolismo, Neto aborda o que vive, o que sente e o que experimenta. Consegue, através da identificação (ilusória, sensorial), fundados na similitude da imagem auditiva, a expressão da sua poética.

“(…) Ainda

o meu sonho de batuque em noites de luar (…)” (poema Aspiração)

A poesia fá-lo paladino da liberdade num “canto dirigido a todos os seus irmãos”. Não é uma poética ao serviço-de, mas uma poética que transcende tudo. Eugénio Lisboa, a esse respeito, adverte:

 toda criação autêntica é quase sempre um contra-poder e que transformar a ambiguidade da palavra literária num instrumento-ao-serviço-de é ignorar a natureza da arte”.

O poeta de “circunstâncias” rejeita a fatalidade, a submissão, os desastres, a herança do «colonizador». E parte “com os olhos secos” para o grande reencontro “festivo”, onde o amor-universal se reforça, na alegria da “LIBERDADE” celebrada através do canto, mesmo a quem é exigida submissão. Mas este aclamado reencontro adia-se, porque o poeta continua a experimentar os mesmos azorragues, porque seus irmãos estão ausentes, nos cárceres. O drama íntimo do poeta é ainda viver a “vida a servir” e a “chorar”. Oswald de Andrade disse ou diria: «A poesia existe nos factos».

É nesta ligação profunda, entre o poeta e o arredor circundante em que Agostinho Neto molda os seus versos, sem forçar a realidade.

Todo o homem, que se inicia na arte da escrita, deve ir além do mero prazer passivo de talhar versos. Deve conseguir “habitar realmente no fundo dos ecos limítrofes da sua morada infinda”, como aconselha Mário Silva.

Nutrido de uma insigne fé, Agostinho Neto, tanto na Sagrada Esperança, Amanhecer como em Renúncia Impossível, proclama e faz ressurgir a vida, como uma “certeza”, uma vida que ressurge no “interior e imanente, depois de ultrapassada a barreira da destruição criada pela vida exterior”.

  1. O SER, O NÃO-SER E O QUASE-SER: O EU-NEGAÇÃO.

Podíamos resumir a poesia de Neto entre “o ser, o não-ser e o quase-ser”. É assim que se apresenta em muito dos seus textos, quiçá, em todos. É interessante como consegue metamorfosear-se nestas copiosas formas. É nesta “virtude Proteica” que consegue se encontra com os outros seres e com ele mesmo para habitar-lhes no íntimo da dor, dos seus cantos. Viver é ser outro, escrevia Fernando Pessoa.

Agostinho Neto socorre-se de imagens sensitivas, como a única realidade da Arte e da Vida. “O mundo é feito de sensações”. “A arte é sensação”, diria o poeta dos heterónimos.

O nosso “cristo da Humanidade” trazia, no fundo de si, a mística. Entenda-se como a presença real do Absoluto. Neto é, em “Renúncia Impossível”, este ser absoluto. Eis que para entender este poema teremos de ler o “Eu-mistério”.

Agostinho Neto, em “Renúncia Impossível” e “Eu-mistério”: 1 Manifesta-se face à universalidade do ser (relações); 2 Manifesta-se a si na reflexão de si mesmo (ser espiritual), numa tensão paroxística entre ser e manifestação.

No “Eu-negação” há o princípio de complementaridade, em que o homem completa o poeta. Ambos entre-são, na medida que se tornam absolutos.

Num espírito Niilista, o Eu-lírico renunciasse através do eu-negação ao mesmo tempo que atinge o “zero-espaço”, “Nada-tempo”, diante ao “vós-tudo” dos “homens privilegiados”. O poeta é marcado ao longo da sua poética pela luta de duas forças antagónicas: o bem e o mal e a oposição entre o finito e o infinito. Os seus argumentos baseavam-se na experiência diária, nos factos que o quotidiano propiciava.

O autor de “Voz de Sangue” comunica a mesma emoção poética em cada verso. A essência da mensagem tem raiz na verdade numa época crítica e histórica retratada no poema “explicação”:

naus carregadas de tristeza vindas das índias
longínquas do coração negro…
todo meu ser se debruça
ante o drama da história
que nos legou esta alma
triste de submissão e sofrimento.”

Não há dúvida que Neto deve ser aclamado como um ser transcendental. Ele não está delimitado no espaço-tempo. Com os “enigmas dos seus retalhos”, cruza todas as gerações e torna-se a encarnação da “Esperança” Nacional e Universal o símbolo patriótico, o eco de uma África e de um Mundo em constante conflito.

Bibliografia

Tempo. Tempo Semanário Ilustrado, 24 de 06 de 1990.
Evans, Ifor. História da Literatura. Inglesa -Edições 70, 1970.
Sousa, Eudoro de. Origem da Poesia e da Mitologia e outros ensaios dispersos. Imporensa Nacional-Casa da Moeda, 2000.
Agostinho Neto – Sagrada, Esperança; Renúncia impossível.