As veredas da vida colocam-nos ao alcance de pessoas portadoras de modos multiformes de nos tocarem a alma. Existem algumas que só se aproximam desse ponto, existem outras que efectivamente nos tocam a alma somente quando nos apetece, e ainda existem aquelas que persistem em tocar a nossa alma mesmo quando já não nos apetece, mesmo quando já não nos convêm. Foi a partir de uma conversa alheia, acompanhada de maneira involuntária, que cheguei a esta constatação.
A manhã ainda era miúda, feito um bebé que se esforça entre oceanos de sangue e suor, para retirar parte de seu corpo retido no casulo que o abriga(ou) durante nove meses. Nesse período do dia de uma data agora esquecida, ouvi a conversa de duas moças graciosas que estavam a parcos passos de mim. De face faiscando doces sensações, uma falava à outra:
– Ele trata-me como se já não haveria outra vez, como se já não existisse outro ser humano no universo. Seus olhos concentram-se em minha face, gerando impacto, porquanto ele me observa como se… como se contemplasse sublime performance em uma secular e espectacular obra de arte; seu abraço é… quente, forte, assim como demorado, que me faz sentir a pulsação… a pulsação do sangue que o coração dele bombeia; as suas carícias exalam substâncias curativas cujos efeitos vão para lá das dores do meu corpo, até a alma se acalma e tenho sentido as feridas dela a sararem quando ele me toca. Olha amiga, ele transmite-me o sentimento de que… de… que eu represento a plenitude dele.
Tem sido mais ou menos por intermédio das formas de tratamento trazidas à superfície no parágrafo supracitado, que certas pessoas lançam sementes ao interior do nosso coração, assim como regam-nas, desenvolvendo em nós sentimentos ternurentos pelas mesmas.
Entretanto, essas pessoas não são perfeitas, não são apenas agricultores de plantas cujos odores fazem espoletar o deleite, a atracção, o apego, a veneração, a submissão voluntária, a paixão, etc. Elas também têm sido capazes de nos causarem desconforto, dor, tormento, pranto; enfim, são susceptíveis a provocarem-nos danos de diversos desenhos e tamanhos.
E quando tais pessoas deixam à mostra a sua malícia, tem havido ocasiões em que os prejuízos têm sido bastante evidentes, extensos e intensos que nos atiçam a duvidar da nossa sanidade mental; uma vez que não conseguimos perceber como chegamos ao ponto de criar laços de apreço por alguém que agora se revela mais desprezível a que própria palavra, nossa cabeça anda à roda sem saber quais são os comportamentos autênticos dessas pessoas e quais são os dissimulados. Os nossos actos desvirtuam-se das decisões que tomámos e anunciámos vigorosamente, revelámo-nos incompetentes em dirimir o duelo entre o que ao nosso coração apetece e o que o nosso cérebro nos aconselha. Dessarte, a relação com as pessoas já referidas afigura-se numa confusão avolumada pelos confrontos entre sofreguidão e razão, sonho e pesadelo, autenticidade e encenação, inocência e culpa, pretensão e acção e assim por diante.
Alguns de nós, talvez os mais destemidos, têm tido habilidades para se apartar dessas pessoas às quais eu prefiro chamar “doce-amargo”. Contudo, tal qual a antítese atinente ao termo entre aspas, significante parte deste afastamento é preenchido pelo estreitamento/aproximação. O distanciamento não tem sido total, ou seja, é físico mas não é mental. Em algumas circunstâncias, quanto maior for o afastamento físico, mais penetrante e abrangente será o pensamento.
Portanto, a convivência social habilita-nos com ferramentas que nos permitem aprender a não julgarmos a essência pela aparência, a descobrirmos o que somos nos contactos com outrem e, principalmente, a ter em atenção que, não obstante a nossa experiência de vida e a nossa inteligência emocional e intelectual, nem sempre seremos capazes de dominar o nosso próprio coração; dado o facto de que o mesmo é propenso a manter elos espessos de afecto com determinadas pessoas, contra o nosso desejo.