Tecidos e texturas na produção poética de Ana Paula Tavares: ilações de “Ritos de passagem”

Ana Paula Tavares é escritora, historiadora e ensaísta angolana. Nasceu no dia 30 de Outubro de 1952, na província da Huíla. Estudos sobre a autora situam-na, do ponto de vista periodológico, na época pós-independência a partir dos anos 80, embora não muito referenciada nestes tempos por ser portadora de uma poética singular e pela fraca produção de estudos na época. Ana Paula Tavares tem várias obras publicadas, a saber: “Ritos de Passagem”, 1985, “O Sangue da Buganvília”, 1998, “O Lago da Lua”, 1999, “Dizes-me Coisas Amargas como Os Frutos”, 2001, “A Cabeça de Salomé”, 2004, “Como Veias Finas na Terra” e outras. foi galardoada com o Prémio Mário António de poesia pela Fundação Calouste Gulbenkian, em 2004 e com o Prémio Nacional de Cultura e Artes de Angola, em 2006.

A obra poética“Ritos de Passagem” foi publicada no ano de 1985, uma obra que resulta do entrelaçamento de imagens da terra e da mulher numa viagem aos costumes da terra que lhe deu origem.

A convite do saber, decidimos percorrer, então, os caminhos da interpretação literária de base filosófico-materialista, a fim de poder apresentar, nesse espaço, as peças que estruturam a poesia de Ana Paula Tavares através do estudo da obra literária referida e mostrar o processo pelo qual se tornam possíveis tais actos, bem como os tecidos de que são feitos tais textos.

Antes de qualquer teoria, a literatura é arte. Entendamos arte como o resultado da produção humana possível através do raciocínio e da técnica formada por um conjunto de ideias que a estruturam. A literatura como arte da palavra transfigurada serve-se dos signos do sistema linguístico e inscreve-se num processo comunicativo de dimensões históricas, políticas e sociais (Maestro, 2017).

A literatura materializa-se através do texto. É uma interpretação da realidade sugerida e imposta ao mundo através de estruturas e sistemas de ideias. Entenda-se que, na interpretação, não há imitação, mas apropriação do objecto a interpretar.

Um dos elementos de muita relevância na textura das obras de arte é o modo de tecer na produção artística. Tanto a poesia como a prosa obedecem a critérios de tecelagem, e cada artista é livre de escolher o que serve e o que não serve para expressar, exprimir e assim comunicar com o mundo exterior os seus pensamentos. A criação passa da interiorização à exteriorização das inquietudes do artista, das alegrias, experiências e outras motivações.

“Textura” é um nome feminino, termo que nos remete para o acto de tecer. “Tecer”, por sua vez, é um verbo de proveniência latina texere que significa entrelaçar fios de uma forma regular. Para simplificarmos, poderíamos reduzir “tecer” para compor. Isto vai-nos conduzir a uma questão: como se torna possível a produção literária de Ana Paula Tavares? Essa questão levar-nos-ia a outro questionamento: de que tecidos se tecem tais texturas? O termo “tecidos” seja compreendido como peças ou ferramentas textuais que formam o conjunto da obra que nos propusemos analisar.

Ana Paula Tavares, adiante Paula Tavares, apropria-se da poesia da natureza. Entenda-se poesia nesta adequação como um ente abstracto presente em qualquer espaço onde haja vida e beleza. Dir-se-ia então que a poesia é o resultado da contemplação do belo. Paula Tavares capta imagens, movimentos e actos através de um sujeito poético em estado de contemplação nos primeiros versos de “Circum-Navegação”, ao mesmo momento sugerindo analogias dos traços da natureza para evocar imagens do acto cerimonial de iniciação feminina, como o do percurso de conhecimento da alma através do corpo:

Em volta da flor fez

                        A abelha

A primeira viagem

circum-navegando

                      a esfera […] (p. 33)

Ritos de Passagem” compõe-se de declarações, textos que declaram racionalmente os processos de iniciação feminina ao mesmo instante que tece críticas a muitos desses actos cerimoniosos, frutos das crenças e da tradição bantu. De seu plural “ritos”, o lexema “rito”, do latim ritus, remete-nos para o referente nominal “culto” e também a um conjunto de cerimónias de uma religião. O sintagma nominal “Ritos de Passagem” vai-nos remeter ao conjunto de cerimónias de transição de uma fase para outra. As culturas angolanas têm um acervo de festas denominadas também “rituais sagrados de cultos tradicionais”. A mulher, na cultura dos povos de Angola, atinge uma fase por tradição que lhe é obrigatório um ritual ou cerimónia. No início da fase da puberdade, a aparição da menarca, a menina-mulher é cultuada e tais “ritos” obedecem a uma organização. Na terceira parte dessa obra, Paula Tavares intensifica suas declarações sobre tais actos. Esta obra, “Ritos de Passagem”, do ponto de vista intertextual, dialoga com a prosa “A Cabeça de Salomé”, da mesma autora, uma obra de 36 crónicas, em cujos textos se tecem várias críticas a certos comportamentos tradicionais. Essa relação pode ser feita através da crónica “A Menina dos Ovos de Ouro” (p. 71).

Os frutos da terra são pequenos tecidos com que se fazem possíveis os poemas na poesia de Paula Tavares.  “Ritos de Passagem” é uma obra em cujo espaço se constata não apenas a flora ou a fauna angolana, mas também sugestivas relações analógicas entre o corpo das frutas e o da mulher. As plantas que dão frutos têm ovário de onde lhes saem os frutos designados também por óvulos. O sintagma nominal “A Abóbora Menina”, título do primeiro poema da primeira parte da obra referida, sugere uma relação análoga possível, através da metáfora, um recurso de expressão da linguagem que permite estabelecer uma relação de comparação entre dois elementos. Evidenciam-se assim, do ponto de vista ideo-estético, os processos de crescimento e amadurecimento – “abóbora-mulher” –, bem como o processo de doação “terra – frutos – homem” e “mulher (ser) – fruto corpo – mulher (fruto maduro)”.

A poesia de Paula Tavares resulta de várias marcas de erotismo através da metáfora entre o corpo da terra e o corpo da mulher, mas comparando a morfologia das frutas com uma parte da mulher que, nalguns aspectos, a torna deusa. O poema “O Mamão” não deixa margem para dúvidas sobre essa relação entre tais órgãos reprodutores:

                                 Frágil vagina semeada

                                Pronta, útil, semanal

                                Nela se alargam as sedes

                                                       no meio

                                                       cresce

                                                       sondável

                                                                     o vazio […]

                                                                  (p. 25)

O concretismo, corrente literária surgida nos meados do século XX, é caracterizado por privilegiar os efeitos visuais no texto, por se servir do texto como uma tela, pelo uso da racionalidade em detrimento das emoções, criando efeitos gráficos, imagens e imensidade significativas no texto. “Ritos de Passagem” classifica-se pela sua estrutura material como uma obra poética marcadamente concreta por ser portadora dalgumas destas características acima referidas. A obra está repartida em três partes numa totalidade de 24 poemas, abrindo, antes destas divisões, com um poema com paralelismo acentuado cujo título é “Cerimónia de Passagem”, termo que explica o título da obra”Ritos de Passagem”, cujo referente geral, sugere-se, é um ciclo de movimentos e crenças. Evoca tal poema ideias de um sujeito poético com sentimentos de difícil adjectivação, pois, aponta não apenas as suas emoções, mas descreve um acto descoberto que contempla e sente necessidade de compreender:

Cerimónia de Passagem

                                                  «a zebra feriu-se na pedra

                                                   a pedra produziu lume  »

                                                                a rapariga provou o sangue

                                                                   o sangue deu fruto

      a mulher semeou o campo

          o campo amadureceu o vinho

o homem bebeu o vinho

                                                            o vinho cresceu o canto

  o velho começou o círculo

   o círculo fechou o princípio

                                                  «a zebra feriu-se na pedra

                                                   a pedra produziu lume  »