“Transa” – o empréstimo do “Pero”

A língua é cultura. Todo angolano que fala uma língua estrangeira herda alguns hábitos do dono desta língua e, pior, tende a falar mal dos hábitos e costumes da sua. E quando falo de língua estrangeira falo também, por exemplo, das variantes duma mesma língua, como é o caso das variantes brasileira, europeia e africana (angolana) da Língua Portuguesa.
Por isso, dói-me bastante o coração quando oiço um angolano a usar a palavra “transar” ou “transa” quando existem palavras equivalentes como “perar” ou “pero”, ou, a julgada no tribunal dos politicamente correcto, “foder”.
A minha indignação surge pelo facto de que as palavras nascem por uma razão ligada a hábitos e costumes. E já que angolanos, portugueses e brasileiros culturalmente são diferentes, embora possam partilhar algumas semelhanças, obviante “transar” para o angolano não tem o mesmo sentimento cultural ou, para melhor perceberem, o mesmo “cuiuiu” que tem para o brasileiro. Porém, como sabemos, o Brasil, através da televisão, principalmente as telenovelas, vende a sua cultura a um preço baratucho ao permitir um acesso rápido e fácil das suas sociedades. Falo usando como exemplo a expressão “transar”, mas há, na verdade, algumas estruturas frásicas e expressões brasileiras adotadas pelos consumidores assíduos das suas obras televisivas como hábitos línguísticos, consciente ou inconscientemente, embora esta última seja a forma mais frequente através da qual as assimilações desses hábitos acontecem.
O melhor exemplo, na verdade, que devo dar é a oposição entre as palavras “pia” e “lava-louça”. Por que razão os facilmente influenciados pelo brasileirismo não aceitam chamar “pia” ao dispositivo de cozinha para lavagem de loiça? Porque para os angolanos “pia” é sinónimo de sanita. O mesmo podemos dizer de “banheira” que para os angolanos significa “bacia”, mas no brasil tem um valor semântico de vaso de pedra ou de outro material fixado na casa de banho que serve para o banho.
Então, se psicologicamente não aceitamos “pia” e “banheira” como sinónimo de “lava-loiça” e “vaso próprio para tomar banho”, respectivamente, como é que facilmente adotamos o”transar” no lugar de “perar”?
Ao contrário de “transar” que é uma palavra dicionarizada, “perar” ainda não é, fazendo desta uma palavra marginalizada, e, para o leigo, palavras fora do dicionário não existem ou não se lhe devem dar valor. Já que “foder” é ensinada pelo dicionário como sendo ofensiva e calão, como um estrangeirismo ou empréstimo, o angolano leigo solicita o “transar” do brasileiro, pois este usa-a em todas as circunstâncias linguísticas, dando a informação de que não é ofensiva. E perar é? Se as três palavras têm o mesmo caminho semântico – ter relações sexuais –, porque é que umas são ofensivas e outras não?
Para dar um fim ao texto e não ao assunto, devo alertar aos falantes que uma palavra não existe apenas quando está dicionarizada, pois seria até um insulto achar que um livro, por mais grande que seja, seja suficiente para agregar todas as palavras que uma língua, neste caso a portuguesa, contém. Portanto, “perar” tal como “transar” e “foder” são palavras pertencentes ao léxico (conjunto de palavras de uma língua) da Língua Portuguesa, ainda que a primeira pertença à nossa variante (angolana) e a última, à brasileira.