“Em cada Sílaba, Uma Cicatriz” é uma obra que congrega poemas com pluralidade de temas, destinada a todos aqueles que adoram mergulhar neste vasto oceano complexo de interpretação e divagação de obras poéticas, em que cada leitor tem a possibilidade de viajar solenemente na beleza da poesia sem se afogar nas ondas emanadas pelo duelo da alma contra as injustiças sociais. Ao evocar Mussungo Moko com a alma, brotam-se-me vocábulos como “desconfiança, abandono, dor, desamor, angústia, deslealdade, coragem”, condensados no título, sobretudo no lexema “Cicatriz”, que nos remete a um conjunto de marcas deixadas pelos diversos golpes sofridos nos mais variados campos de batalhas.
O jovem escritor, dos seus 31 anos, é dono de uma poética que, apesar de suis generis, de um ponto de vista intertextual, consubstancia-se na fusão do pensamento estético da Geração Mensagem e dos diferentes pensamentos estéticos das vanguardas que foram emergindo até a criação desses poemas. Factos denunciados pelo discurso narrativo, por sinal, o tronco comum dos poetas da Mensagem, presente em muitos poemas como este: “uma velha mãe negra \ toda ruída de ódio \ que espreitava a idade dos velhos pecadores \ sacrificando-se no crucifixo fiel como sufixo \ que magoa os pés descalços \ pelos assobios das frases arcaicas” ou este: “Era uma vez uma guerra boa e benéfica \ sem tortura nem ódio \ e nem mesmo nada \ porque os soldados tinham cor \ de camponês na mesma planície \ e os operários atribuíam-lhes máquinas”. E pelo discurso reticente, marcado por uma linguagem fortemente conotativa, poética cultivada pelos cultores das gerações subsequentes, como podemos observar neste excerto: A barriga ergueu a luta \ a mão exibiu o exército \ e conservou os edifícios ruídos de feridas \ O mesmo coração manietou-se \ no sangue ensanguentado.
Os poemas de Mussungo Moko desabam os muros da timidez construídos a volta da juventude e se concretizam numa construção bélica em sua intenção e linguagem: “Também enfiei o dedo vindo do alto \ nesta cidade erguida de aço \ nascida em areal vermelho \ E hoje os fragmentos me arrastam a vida pelas tripas \ No céu ninguém me ouve \ ninguém me atende”.
O título no fim de cada “escrito” deve-se à Agris-doutrina[i], justificada pelo conceito de automatismo sugerida pela poética surrealista e pelo Conceito de intuição artística apresentado por Croce, em que o título, com força de tema, resulta de uma última reflexão em torno do já escrito.
Do ponto de vista técnico-formal, os textos apresentam-se-nos, maioritariamente, em versos. Porém, a percorrermos em cada página das suas cicatrizes, deparamo-nos com duas belas poesias em prosa, na forma e não no conteúdo.
Apesar da sua condição de combatente, Mussungo Moko traz poesia para todos os gostos, susceptíveis de provocar ao leitor as mais variadas reacções, desde a simples descontracção a incompreensíveis sensações e gozo na alma. Tenho comentários infinitos relativamente a muitos trechos desse livro, todavia prefiro que os leitores descubram os diferentes enigmas pintados pelo poeta, que busca a sua imortalidade nos textos aqui apresentados, enriquecendo a Literatura Angolana contemporânea com sua arte. Por todas essas razões e mais algumas, recomendo o livro “Em Cada Sílaba, Uma Cicatriz”.
A barriga ergueu a luta
a mão exibiu o exército
e conservou os edifícios ruídos de feridas
O mesmo coração manietou-se
no sangue ensanguentado
Só exclamaram uns nadas
outros do pó
e nós das lamúrias
porque eles são os latidos
Mas quem foi
que adivinhou o ódio
para a história inventar os heróis?!
«A exclamação de uma interrogação»
Esse humano
que bebe o esforço
posto a sua volta
pela curva do vento
é a minha carne
a inflamar a língua
na forma do pão
E nem a cauda da água
enraizada a esta nação
para se enrodilhar nas vidas
lhe vê a alma
Com os seus brados de infinitos
pôs a palavra em movimento
e com a mão adivinhou a luta
O tempo não envelheceu
com os dentes
erguendo coisas
e eu ainda aqui permanente também
«A forma do pão»
Essa mulher no ar a colar de ternura
e destinada a vós
é minha
Se com ela dormires no mujimbo da caverna
com os pés empurrados
recue as pernas para trás
porque sou o dono das pedras
do lugar
do lado
do onde a gozar
frente a porta que se quer no presente
Essa mulher que habita
no terror de ser roubada, é minha
E só quero um dia escolher
das rosas que lha dei num verso verde
no serpentear das águas secas e doces
E eu juro que quem a beber enrodilhada
levará o seu nome no começo
gritando mais depressa
o amor que lhe vem da véspera
Essa mulher que não é a Eva de Adão
e nem da carne coroada, é minha
só a têm o mimo dos homens
na forma de nascer virgem em Luanda
para que não a confundam com a alma do enfado
num mundo cenáculo
e eu privatizo-a
Ela é minha
«Cenáculo»
[i]Agris-doutrina: Agristética, o conjunto de princípios estéticos que norteiam o pensamento criativo dos membros do grupo literário Juvenil Angolano, Movimento Litteragris.
Biografia
José Mussungo Moko, nasceu em 1982 no Município da Ganda, Província de Benguela, nas recônditas regiões onde fez os seus ensinos primários, por baixo de posições perigosas, o que lhe permitiu colar facilmente na obra as tradições vividas.
Em 2001, por questões de finanças, viu-se obrigado a abandonar os estudos e ingressou às fileiras da Polícia Nacional, tendo cursado no Autódromo de Luanda e, subsequentemente, feito o seu juramento em Mavinga, Província do Kuando-Kubango, onde labutou cinco anos como especialista de Arquivo em expediente, posteriormente como especialista de operações. Por questões de saúde, por um ramo de árvore lhe ter passado ao olho esquerdo nas matas entre as fronteiras com Namíbia, em missão de serviço. Foi evacuado para a Província de Luanda e submetido aos cuidados médicos, depois foi transferido para C.P.I.P. – Comando de Protecção de Individualidade Protocolar – de Luanda e Colocado no Palácio da Justiça Nacional, onde exerceu a função de Oficial de Material de Guerra. Continuou a estudar até culminar o ensino médio, levando consigo o desejo de ingressar numa universidade para iniciar o curso de Literatura. Desde pequeno, passou o tempo a escrever letras de música, só depois, no ano de 2002, passou a escrever poesia, a descobrir que a sua voz não dava jeito para cantar. Em 2010 foi Membro da B.J.L.A. – Brigada de Jovens de Literatura em Angola. Dissociando-se da Brigada, foi co-fundador do M.L.V. – Movimento Literário Vianense. Presentemente, é membro de direcção do Movimento Litteragris e estudante do Primeiro ano do Curso de Direito pela Universidade Jean Piaget.