«O Ocaso dos Pirilampos» é um romance Psicológico que explora sintomaticamente a temática sobre a questão do «perigo do poder nas mãos de um doente mental». O discurso narrativo processa-se por via dum monólogo interior directo, como o principal modo de representação e expressão. Trata-se, na verdade, dum romance de confissão, com atípico desenlace, sem uma acção central, em concreto, porém em constante movimento de ida e retorno, por interposição a frequentes analepses e a prolepses, pressupondo assim, quanto ao tempo do discurso, um tipo de anisocronia caótica, num universo diegético povoado por não mais do que cinco personagens, sendo que estas surgem, apenas, do ponto de vista psicanalítico, por força dos delírios dum narrador que conheceu uma mulher «mulata» que «parecia organizar o caos com o arrastar do seu corpo», e passou a chamá-la por «Minhaluta», de quem teve de se separar, porque não lhe seria útil à vida política; conhecendo posteriormente uma senhora que tanto gostava de homens, como gostava de livros, de nome «Luzia de Todos os Prazeres», dama de companhia de «deputados, escritores, cooperantes estrangeiros» que entre os quais se «incluía com muito gosto».
«O Ocaso dos Pirilampos» é uma obra que expõe a fragilidade teórica do romance contemporâneo, configurando-se como uma anomalia que contende, do ponto de vista da sua concepção criativa, contra o predomínio do romance realista angolano. Diríamos, um anti-romance ou uma forma de anti-literatura, como diria o surrealista David Gascoyne; um caso de raridade absoluta na instituição Literatura Angolana; pela sua dimensão crítica e frequente comparação com outras obras literárias, um exemplo fenomenal de metatextualidade que se concretiza por via dum tipo de intertextualidade «antitética» quando compara a cadela «Merci», a quarta personagem, com os cães de obras, como o «Ano do Cão» de Roderick Nehone e «O cão e os Calus» de Pepetela, como se pode verificar no excerto que se segue:
A Merci não é como o pastor alemão de o cão e os Calús, nem burro como o do ano do cão, ele é como o cão do Ministro. Ela não estava interessada em ser alguém na literatura Angolana. (pág. 79)
Ainda no plano do dialogismo literário, a obra apresenta, em termos de envolvência nas diferentes frentes de combate (colonialismo e guerra civil), uma ideologia diferente, em relação à obra «Mayombe» e outras obras afectas à Literatura Angolana. Em «Mayombe», a luta era assumida por uma colectividade implícita na figura de «Nossa Luta», no entanto, em «O Ocaso dos Pirilampos», aparece a palavra amalgamada «Minhaluta», e a luta passa a ter um único protagonista que sozinho conseguiu a paz (e eu nunca teria conseguido a paz, pág. 15), e «minhaluta» passa a ser a expressão secreta para se referir ao seu doentio amor pelo poder ostentado:
Todos saberão que esse impulso só poderá ser um desejo amoroso (pág. 89.)
Batuqueirooooooooooo! Eu ouvi as músicas que ela compôs, antes do encontro. Os meus poros sabem bem quem é a minhaluta. (pág. 91.)
O batuque, instrumento musical que, do ponto de vista da sua expressão, pode emitir sons festivos como tristes, é um instrumento de tradição milenar para realidade africana e, eventualmente, para outras realidades, tendo sido utilizado até mesmo como um meio de comunicação entre os reinos mais próximos. Em Agostinho Neto, por exemplo, o batuque é também comunicação, como nos evoca o poema «Voz do Sangue» (Palpitam-me/os sons do batuque/ e os ritmos melancólicos do blue/in Sagrada Esperança). O batuque em «O Ocaso dos pirilampos» ganha outros contornos semânticos, simbolizando (…) «a fonte de todos os rios do poder (pág.16)» e dá origem ao adjectivo «batuqueiro» que, do ponto de vista sociolinguístico, atendendo-se ao imaginário angolano, nos remete a assaltantes altamente qualificados e perigosos.
Como já referimos, «O Ocaso dos Pirilampos» é um romance de confissão e de contundente ruptura que marcará, seguramente, um período. A propensão vanguardista evidencia-se quando o autor adverte, por via do seu narrador, que na sua «…literatura, não existem tabus, nem de lugar sagrado, nem de partes de corpo proibidas que não possam inspirar reflexões de transformação» (pág. 52). O narrador é uma entidade intratextual (?), como diria o narrador de «Viagem Para O Fim» de João Tala, «com residência no passado», acarretando consigo, em termos psicopatológicos, transtornos psíquicos graves, desde a infância. Trata-se dum sujeito que nasceu e cresceu em subúrbios (pág.137) que, quando mais pequeno, já apresentava um quadro psíquico preocupante, duma criança com necessidades especiais que cresceu «tossindo, a esconder-se dos outros, a encontrar pretextos e explicações para coisas que (…) não sabia explicar; (pág. 59); uma criança egoísta que teve tantos brinquedos e, no entanto, teve de escondê-los e brincar com eles, sozinho» (pág.60); uma criança com frequentes alucinações, que perturbava o sono da mãe com os seus sustos, que, a nosso ver, nos termos do DSM5, Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, pode-se dizer que apresentava sintomas de transtorno de stresse pós-traumático: pelo medo, sentimento de culpa, tristeza, vergonha, e confusão; pela falta de interesse ou participação bastante diminuído em actividades significativas, incluindo redução do brincar; e fundamentalmente pelo comportamento socialmente retraído, causado, provavelmente, pela trágica perda ou desaparecimento físico do pai, uma vez que, este, não o referencia em nenhum momento. Após a morte do seu ídolo, «todas as esperanças tinham sido postas nele» (pág. 15).O futuro déspota conseguiria o poder por via duma assembleia que o subestimava por ser demasiado jovem. Estimulado por um sentimento de vingança, transforma-se rapidamente no senhor absoluto e passa a exercer o poder por via do falo (com o falo em alto eu submeto todos, pág. 121) e do batuque. O poder passa a ser a sua obsessão (urinar e mandar são duas das minhas obsessões, pág. 14), passando a justificar a sua existência (batuco, logo existo, pág. 66). Para melhor governar, teve de criar uma estratégia que passava por fundar uma «República Animista» que se processasse como uma «organização criminosa», constituída pelos «novos-ricos ou novos-batuqueiros», presentes em todos os sectores da sociedade, «até nos sítios que parecem sagrados, inacessíveis, incorruptos, à direita de todos os deuses e dos diabos» (pág. 30), com uma democracia a sua maneira (tudo numa desordem organizada, pág. 89), financiada pelos ganhos do petróleo, o «milagre»:
A polícia é uma armadilha desconjuntada e, como em qualquer parte do mundo, também estamos dentro dela. Durante o dia, nós fingimos e passamos por gente decente, guardiães de uma moral que se esfarela (pag. 28)
Com a ajuda das igrejas proclamaremos a República animista (pág. 30)
Trata-se dum ditador que, consciente dos seus actos, criou um círculo de horrores em que o seu rosto é a mascara que amedronta (os meus gestos são uma ordem… basta que eu deixe sugerida a presença da arma debaixo da camisa e todos sabem que me sinto o guardião do universo, dono de tudo que aqui se move…, da liberdade e da repressão, pág. 103); um SER demasiado egoísta, (… o batuque que é mesmo só meu, pág. 122) que funda um estado de silêncios, sem liberdade, de constante violação de direitos tão fundamentais como o da liberdade de expressão e de livre pensamento (e a minha presença onde quer que seja faz instalar a lei do silêncio, pág. 103 …têm de ficar calados e não podem ter opiniões próprias. Tudo o que pensarem tem de ser uma interpretação ajustada às minhas ordens pág. 121); com o pleno poder decisório em sua posse, um deus-batuqueiro, se é que se pode dizer (eu posso tornar-vos novos-ricos ou novos-pobres…Eu posso fazer de vocês novos-excluídos ou novos poderosos… pág.105), «dono do tempo, da geografia e da ideologia» (pág. 107) que trouxe a paz ao seu povo, «e a corrupção, o verdadeiro motor do mundo do» seu tempo (pág. 104).
Um dos aspectos mais importantes, a ter-se em conta, é a dimensão futurista de «O Ocaso dos pirilampos»: uma obra escrita seguramente antes ou ao longo do ano 2013, mas já pré-visualizando eventos sociopolíticos pontuais, como é o caso da substituição de que muito se falava, as hesitações, as especulações, a eventual saída ou a eventual permanência, que nos remetem ao partido da situação:
No mundo virtual: uns jovens que se proclamam novos revolucionários querem pôr de patas para o ar o nosso barco, mas nós os abandalharemos.
Quando eu deixar, se um dia deixar, a política para contar dinheiro ou farfalhar barras de ouro maciço, quando eu deixar o batuque nas mãos de outro qualquer (pág. 89)
Outro aspecto importante refere-se ao uso da palavra «Ser», com valor de substantivo; sempre grafado com maiúscula, no entanto, aparece na página 30 com inicial minúscula pra se referir ao estado de subjugação em que o déspota se encontrava:
Afinal aquele ser que, no dia-a-dia, era um respeitável senhor com ares de mandão, (…), estava aí a disposição deles para todas as fantasias e pornográficos rituais, subjugado pelos malabarismos das línguas deles…
O vermelho é cor do fogo e do sangue, mas, em termos simbólicos, configura uma cor paradoxal, encerrando valores positivos como paixão, desejo e amor; e valores negativos associado à guerra, perigo, força, poder incontrolável e também a cor da bandeira marxista. O romance em análise apresenta-nos a figura dum tirano com obsessão pela cor vermelha, incorporando todos valores citados, como podemos verificar nos excertos que se seguem:
Aquele Ser desconhecido, tinha os olhos tão vermelhos que não havia dúvidas que gostava de sangue. Sempre que vi correr sangue sobre areia vermelha senti um prazer de monstro… O poder da cor, para mim, (…) é a cor do sangue. (pág. 108)
Bastavam deslizar os pés por aquela alcatifa vermelha e o meu falo parecia seguir o instinto… (pág. 121)
Aquele vermelho estimulava a minha excitação… (pág. 122)
Ao autocrata do romance em estudo, pode-se-lhe diagnosticar vários tipos de transtornos. Trata-se duma personagem «redonda», do ponto de vista da sua concepção, muito dinâmica, com vida interior bastante intensa; com sintomas que, pelas frequentes alterações cataclísmicas, podem confundir até mesmo um psiquiatra experiente. A personagem-paciente, não poucas vezes, preenche um quadro psiquiátrico de Transtorno da Personalidade Narcisista, manifestando ao longo da diegese uma admiração excessiva por si, sensação de grandiosidade da sua importância que o faz exagerar nas conquistas (trouxe a paz ao meu povo), talentos excepcionais (tudo nasce dos seus órgãos) e espera ser reconhecido como superior. Outrossim, seria a preocupação com fantasias de sucesso ilimitado como o poder que exerce por via do falo e do batuque (tanto posso destruir como gerar tudo, pág. 15); acredita ser “especial” e único capaz de exercer o poder, (o batuque que é mesmo só meu, pág. 122); soube como explorar as relações interpessoais e daí tirar vantagens dos outros e, assim, atingir os próprios fins: a permanência (…venderia aos moradores as casas ou edifícios públicos que ocuparam de maneira anárquica, para assim comprar a subordinação cega deles até eu morrer); acredita que o acto dos «revus» é por inveja e que todos são mal-agradecidos. Em vista disso, demonstra comportamentos ou atitudes arrogantes e insolentes como um mecanismo de defesa pelo medo que sente das multidões. Pela sexualização da linguagem, perfeitamente casada com os tropos do simbolismo, o que faz dela bela e violenta simultaneamente, poder-se-ia falar ainda dum Transtorno do Sadismo Sexual, que o leva a frequentes e intensa excitação sexual, resultante do sofrimento psicológico que o seu falo impõe aos seus súbditos:
Quando digo aos meus subordinados para entrarem no lugar em que toco o batuque, observo-os primeiro bem se têm ou não nádegas volumosas. Até mesmo antes de certificar-me dos atributos físicos das vítimas, fico logo teso: senhoras respeitáveis, maridos fiéis, militares arrogantes, polícias, professores, engenheiras, dirigentes de partidos políticos, líderes religiosos e guias de seitas religiosas, médicas, simples empregadas de limpeza, solteiros, casados ou boémios, gente educada ou sanzaleira, eu os submeto todos com o falo e eles já sabem, se querem desfrutar dos sons do meu batuque têm é que ficar calados e não podem ter opiniões próprias. Tudo o que pensarem tem de ser uma interpretação ajustada às minhas ordens.
No entanto, ao se ver subjugado, apresenta um novo quadro que revela o Transtorno do Masoquismo Sexual. O indivíduo, ao ser abordado pelos «revus», está em permanente e intensa excitação sexual decorrente do acto de ser humilhado, espancado e, mesmo sentindo-se vítima, o sofrimento agradava-lhe:
… e eles continuaram a chupar-me o ânus, enchendo-o de emails e livros subversivos(…): agarro o poder como os dedos das mãos agarram o falo, enquanto me masturbo. Fui entesado e ansiava virar-me, mudar de posição, coisa que eles não deixavam, (…). Eles chupavam-me o ânus com jeito de mal-agradecido, com a autoridade de quem conhece o caminho e pensa para si que, também, aquele ânus era deles, tanto como as riquezas do mundo. (…) estava aí à disposição deles para todas as fantasias e pornográficos rituais, subjugado pelos malabarismos das línguas deles. (…) Senti-me húmido, pensava nas tradições que se diluíam na boca mágica deles(…) (pag.130)
Eles chupavam-me o ânus e com ele a minha honra toda e pensavam que o acto em si não era muito romântico (pág.131)
Fico teso só de pensar em todos eles (pág. 121)
Pode-se dizer que essas manifestações comportamentais decorrem, na verdade, de vários transtornos psicóticos associados, advindos, fundamentalmente, de dois factores: do histórico, que nos leva à sua infância conturbada, como já referimos aquando da caracterização da sua infância; e do abuso de estupefacientes (eu nem sequer dei conta do dia em que comecei a consumir heroína, pág. 106; quando querem chatear-me e eu quero aparentar que sou débil, snifo heroína, pág. 107.).
A instância produtora do discurso, o déspota, manifesta uma série de delírios ao longo da diegese, que se podem resumir nos seguintes: Delírios persecutórios (quando acredita que irá ser prejudicado pelos jovens que se proclamaram de «os novos revolucionários»); Delírios de grandeza (quando crê que tem habilidades excepcionais e riquezas) e Delírios erotomaníacos (o indivíduo acredita falsamente que o grupo de revolucionários está apaixonado por ele). São também encontrados Delírios somáticos (concentram-se em preocupações referentes à saúde e à função dos órgãos, levando-lhe a acreditar que tudo nasce daí: escolas, hospitais, etc.).
O diagnóstico final para um ser psicótico como o de O Ocaso dos Pirilampos, e por ser a literatura um campo de subjectividades, é de algum relativismo. No entanto, ainda assim, concluímos que o indivíduo preenche melhor o quadro de «paranóia» que, segundo BOCK, se trata duma psicose que se caracteriza por um delírio mais ou menos sistematizado, articulado sobre um ou vários temas, distinguindo-se da esquizofrenia pela inexistência de deterioração da capacidade intelectual, incluindo os delírios de perseguição e de grandeza, manifestados pelo tirano ao longo do seu discurso.
Eu organizo o nosso universo com a mesma força e criatividade que a possuo, tudo numa desordem organizada (pág. 89)