Jovens escritores em palestra na União dos escritores Angolanos | Fotografia: Paulo Mulaza | Fonte Jornal de Angola

Uma proposta irrevogável. Fechando fendas e valas por onde se enterram as consciências de que os escritores são os veículos de uma nação

Habitamos num país com grande povo de poucos leitores, facto que impõe dificuldades culturais para um livro bem-vindo, sem recusar a maturidade de todos os livros escritos primeiro.

Apenas por hipótese, julgo saber, porventura, propor uma opinião sobre esse livro sob os signos ENVIESADA ROSA, do escritor que seus pais decidiram chamar ora por Hélder Silvestre Simba André ora por Ybinda Kayambu.

O qualitativo enviesado remeter-nos-ia para uma reflexão de contrários, por significar, de acordo com os dicionários, aquilo tudo feito de viés, dúbio, torto e de má direcção, mas não há razões para tal percepção enviesada, se concedermos à mulher toda a culpa dos textos escritos e não escritos, se ela for a ROSA que leva o homem aos mais valiosos milagres da arte; ela está neste livro como um acidente costeiro, como um fogo de amor, ela está inclinada nos poemas, aberta em todos os lugares do território, como se fosse o céu e a terra. Por natureza, mulher é um viés da razão humana, ela é arte em si, e a arte é um viés. Essa seria a causa do título e, no primeiro texto do livro, existe a mulher Ybinda: mulher miss, mulher segredo do Mayombe, mulher água de Lukola, mulher angolana única, mulher feita de tchikumbi.

A literatura é um caminho para essa toda clareza escondida dentro de cada homem, Hélder inaugura, na sua época, a Rasha do erotismo, o rei dos sentimentos estéticos (o sentimento erótico) nos dizeres da crítica Literária Indiana. E para Maria Esther Maciel, no seu livro “A Palavra Inquieta”, pág. 111, Rasha é a graça de uma obra, mas também sua essência, um sabor, um gozo e o seu conteúdo ao mesmo tempo, e o sentimento erótico é a chave para se obter os deleites da razão, e todos os outros sentimentos estéticos se conectam, de uma forma ou de outra, a este.

Vezes são várias, neste livro, em que contamos com metáforas enfiadas dentro da mulher, como se fosse mamilos dentro de um soutien leve, mostrando praias, cachoeiras, rios, animais, lagos e lagoas, estendendo a mulher na dança de todos homens, como alicerces de cada verso que abre os poemas. Esse encontro com a amada faz-lhe encontrar também com a outra amada de corpo ausente, a outra do outro mundo. O mundo das ideologias e ideias que jurou assumir. A poesia do Hélder, pela sua carga poética, gira de imediato para um consumo imperativo no seu hoje.

Hélder traz uma marca estranha à poesia erótica dos seus predecessores, e a nós, parece-nos um dado novo em toda a forma de fazer a poesia erótica angolana, o facto de os poemas não se definirem como verdadeiramente líricos, nem mesmo, como meros poemas eróticos. Há, por razão justificativa, uma inconstância artística explícita na subtileza dos verbos, no fogo que traz por dentro da mulher, na história enxertada nos versos, as ironias que circulam nos temas, no choque cultural apreendida na expectativa do homem, bem como na matura ousadia com que fala sobre mistérios da vida e essa festiva sinestesia seria deveras descarada para ser uma simples expressão erótica ou uma mera confissão:

Ela vinha numa sanga/ eu vinho de palmeira/ ou de volúpia/ sobuma azeda luz/ de limão ao sol/ o amarelo das gajajas/ a rolandar na língua/ chamada desejo. Koi-san de caneta carvão/ lavrando versos rupestres/ na gruta do desejo/ por Tchitundo-Hulu o paraíso.

Poemas com esse pendor levam-nos a uma praia de percepções, para uma madura inquietude sobre o que será essa poesia, poesia erótica moderna ou poesia erótica angolana? Gostava de responder, sim, às duas questões.

Queria dizer, com isto, que o mais importante nessa poesia, desde já, não é, necessariamente, o facto de empreender um erotismo para a sensibilidade do prazer, e sim, o facto de ser e estar dentro de uma geo-identidade africana e, mormente, angolana. Por assistir, histórica e moralmente, aos nossos lugares de tradição, aos nossos rios de poder, ao dever de haver de voltar às nossas matas, às nossas mulembas, às nossas kissanjes, em fim, o que fizesse Agostinho Neto no Realismo, Helder fá-lo-ia no Surrealismo agristético. A poesia anda dentro dos tempos imprecisos e nos dias intemporais, dentro e fora do universo. Portanto, “kianda”, “antílope”, “kazumbi”, “Nilo”, “kwanza”, “sahara”, “koi-(san)” transmitem uma corrente de nomes que dão ao homem a luz da sabedoria.

Hélder, mediante uma inspiração pura e perfeita, une o verso e demonstra uma alma de claro voto para uma poesia do universo. Acorda do sonho e não é mais nada! O poeta congrega um vasto centro de contactos de culturas diversas, mostrando um elevado grau de um homem comprometido com o seu étimo espacial. No poema ORGIA, está essa: atmosfera de rítimos africanos/ nos céus das minhas cabeças/ egípcias e mukubais/ornadas de missangas. Assim, como no poema QUIMERA: avança o caçador caranguejandando/ de Cabo Verde erecto/ feito kazumbi.

Nos poemas, o poeta indica-nos haver como que uma confissão de iguais intenções poéticas com os poetas Pablo Neruda, Lopito Feijoó e Luís Mendonça, mas sem dogmas nessa translineação ideológica. Nas histórias das estéticas, o Surrealismo e o Agristetismo seriam os atributos axiológicos de todo o seu livro, por irromper com o conformismo poético que assolava sempre os demais poetas, por denotar uma ténue transgressão, a todo custo, de signos vernáculos, assente numa confecção intuitiva e racional, concomitantemente. Tratar-se-ia, então, de uma proposta irrevogável.

Enviesada Rosa distingue-se pela sua inovação artística em muitos aspectos, desde a colocação do tema depois da confecção poética, facto que se justifica por o poeta buscar o impulso criativo através do acaso e do fluxo das experiências, instintivamente, despojadas na obra e por a estrutura do texto ser determinada pelo pensamento e não por critérios pré-estabelecidos (In Manifesto do Litteragris), uma das características da poesia da sua geração, de um lado. Do outro lado, é o caso da grafia da palavra RÍTIMO. É de convenção linguística que não se deve ser escrito assim: ritmo. Tudo para dizer que estamos diante de uma obra que promete uma nova configuração gráfica da língua e uma nova concepção ideológica sobre diferentes aspectos da literatura angolana. Não é um livro efémero e sim eterno.

O livro supera o culto de poesia vazia, aquela que se fundamenta no pretexto do texto enigmático, dizendo em silêncio por nada informação haver, porque o texto está fechado de figuras sem caminho do entendimento, e a poesia simples, aquela feita sem técnicas da poética, caracterizada por ser natural como os próprios destinos primários das palavras. Essa não é uma poesia extra literária.

Busca as línguas nacionais de lá onde andam desesperadas para funcionarem como instrumentos de condição, como que sine-qua-non para a condução de uma obra literária. O poeta vai até às suas origens com uma canção de luta impregnada no corpo da mulher, fechando as fendas e valas por onde se enterram as consciências de que os escritores são os veículos de uma nação linguística. O livro reivindica a confiança que habita no conhecimento de que as línguas nacionais e os seus significados são os rostos dessa identidade cultural e que o estranho na arte acaba com o sentido perdido noutra língua. O que faz a obra literária é o verbo nacional, e, no caso concreto, para superar as ordens do passado estético, houve que passar por idiomas culturais.

Nós pensamos que a língua estética, a portuguesa, não é, necessariamente, capaz de situar geograficamente o artista, é preciso, para que o escritor faça parte de uma pátria literária, fazer recurso a uma língua de cultura. Acontece que uma língua pode não servir como identidade de um povo específico, como é o caso da língua portuguesa. Para que o escritor tivesse angolanidade literária seria obrigado a recorrer ao kicongo, kimbundu, umbundu ou outra que fizesse fé à cultura angolana, o mesmo acontece com o escritor brasileiro que usa kimbundu apenas para efeitos de personagem, porque em nada o identifica, no texto poético, como brasileiro.

Ybinda faz esse recurso para se inscrever na pátria literária.

A obra marca uma fronteira entre o que é e o que foi, como se a poética do passado fosse um calor opressivo, tão húmido e desconfortável, e, do ponto de vista da metodologia, a palavra “ruptura” não é tão inadequada para dizer que ocorreu, neste momento, uma viragem, porque, de facto, na formação da nova literatura, a poética dominante já não domina, fica tudo como se não existisse.

A axiologia de um livro mede-se também pelo papel social que desempenha, as profundas denúncias de uma cela excessiva, de uma água em falta, os empregos desafinados e, a seguir, o poeta insurge-se contra as hipotecas da nação: torturam-se corações / com palavras lâminas / sabe tão bem na língua todavia / toda a via é curta/ na busca hipotecamo-nos/ hipotecamos nações.

Poesia de uma bicéfala filosofia platónica traduz a ideia do mundo material e do mundo ideal, a poesia materialista que representa a arte, porque se funda nas ideias que constituem as sombras das coisas mutáveis, e a poesia idealista que existe a partir do mundo inteligível e representa a imutabilidade e a verdade. Hélder vê impressões nas coisas quando escreve: por vezes descalça os lábios, escorregando aos beijos sobre o cristalino pescoço da mulher, por vezes tem a impressão que a mulher é de vidro. No mesmo poema, o poeta afirma que vive a mulher entre o sonho e a realidade. Confirmando, assim, essa ideia de que a arte reside nas impressões e só depois é que teria uma viagem cognitiva para a sabedoria e o conhecimento.

A poesia mostra ao homem a inspiração das coisas, produz uma inquietude sobre as verdades e as causas das coisas. Portanto, quando o leitor retira do texto a confiança e a certeza de ter sabido que a realidade está numa poesia, ele está com esse relativismo entre o ser e o não ser das coisas, teve apenas impressões. A poesia é a dúvida que cria o conhecimento, é a alegoria do caminho de cada um de nós, de facto, a poesia antecede o conhecimento.

O resto sobre a poesia do Hélder sobra na leitura como a cura de uma fissura nas nossas almas. Ninguém está preparado para definir uma poesia, mesmo os que ousaram defini-la acabaram por errar. A poesia, ela mesma é, às vezes, objecto de indefinição quando nos leva à mesma incapacidade de definir o gosto do café, a cor verde ou amarela e o significado das emoções ou do nosso amor pela pátria. A poesia de Hélder está tão entranhada em nós (os leitores) que só pode ser expressa e percebida lendo-a eternamente.

Partilhámo-la, porque ela nos veio como um dado da criação divina.

In “Diário da poesia angolana”