Na esfera do estado de emergência: um olhar à obra “Quarenpoema”, de Zola Vida

É vocação dos textos literários tomar como objecto os assuntos sociais e ser capaz de influenciar atitudes e comportamentos, como também interferir nos mais variados meandros que fazem a sociedade. O planeta terra, em particular o cosmo angolano, vive uma crise sanitária sem precedentes, causada pelo vírus SARS-CoV-2 que, drasticamente, alterou o nosso modus vivendi. Uma das características provocada pelo SARS-CoV-2  é que inúmeras literaturas estão sendo escritas agora. Publicada em Abril, contendo 14 poemas, a obra Quarenpoema, de Zola Vida, é fruto dessa atmosfera. Nossa análise recai para o aspecto conteudístico da obra em época de quarentena.

Ao olharmos na composição morfológica que constitui o título da obra e a estrofe de abertura, “Sob o astral da quarentena, mesclando na folha alegoria e mel, lambendo poesias chocolatadas de aura”, Zola recria seus textos a partir do caos, dando uma outra forma de ver e viver a quarentena imposta, a partir de uma concepção poética, contemplando o lado positivo que traz as crises, buscando uma tentativa de restauração, de recomposição de uma falta, sobre a qual sente que precisa levantar uma ponte simbólica que o levará ao encontro consigo mesmo e com a comunidade, para que, juntos, se guarde, de forma intacta, a esperança, o amor, a coragem: Um/turbilhão vagaroso/embala /a/fronte/em/singular e plural movimento viscoso/e/no cimo um sino/ segreda/à coroa/que a tristeza já tem idade zero” (Dia 1, p. 7); “O rosto da brisa desprende o pulso/ profetizando a aragem de braços páreos/ a listra branquela com pedacinhos de sol/traz à bandeja cinzenta o tempo diamante” (Dia II, p. 8). “Partindo da insatisfação do presente, a ânsia do artista recua até encontrar no inconsciente aquela imagem primordial e adequada para compensar, de modo mais efectivo, a carência e unilateralidade do espírito ” (Jung, 1991, p. 71). No entanto, o isolamento físico ou mesmo geográfico, não deve constituir o deserto da vida. Zola procura romper o extremo negativo do exílio presente através de um chamamento à superação, a aspirar ao essencial da vida, a fazer das fraquezas força, apesar das incertezas do momento: “Vejo no coração do ciclone frásico a plenitude da vida/cronometrada a palmos, expandida no frouxel de gaivotas prudentes, com asas regadas de música celeste” (Dia II, p. 9); “Cresço/ e/ recresço/ nas curvas da guitarra/ cá me esquivo e revivo a viola carnal” (Dia IV, p. 10). Conhecendo os transtornos sociais, morais e económicos que a pandemia tem perpetrado, o eu-lírico, no seu momento de desabafo, demonstra uma sensação de clamor, de impotência perante a fatalidade e as dificuldades que vivencia: “Sussurram nas entranhas entranháveis à dor/ as folhas embebidas de tempestades sem dó/ sussurram nos encantos de mantos bantus/ cantos de prantos nos antros dos astros” (Dia V, p. 11); Só quero e espero o mero esmero/ De letras ou tretas, epah… da arte…/ Lavrar cacos metafóricos na seara estilística/Com eles ferir a epiderme de normas Che!” (Dia VII, p. 13). Há no eu-lírico dois sentimentos antagónicos, inicialmente, das inevitáveis transformações na alma humana depois das provações pelas quais está a passar, e depois das alternativas que nos restam para o futuro. Parece que a poesia passa a ter dois papeis, intimamente imbricados: sobreviver para a humanidade, pela supremacia da estética, da beleza e do «misterioso» contágio amoroso e humano, e sobreviver para si mesma. Ou seja, a poesia surge como forma de resistência, tendo a obrigação de se auto defender, de ultrapassar os terríveis obstáculos  e proclamar sua contínua existência no fazer humanidade em tempos difíceis: “Quarenpoemo em noites safíricas/Em que o ar engalanado galopeia em desejos/E as luzes prateadas da lua solar jactancia-se/em duplicado” (Dia X, p. 16); “andando, alando/amando e arando/colher milhos de modéstias nas estepes sagradas/regar o régio com regos des /egos/ e escalar a escada de sardónica eterna” (Dia XIII, p, 19). O eu-lírico zolaniano manifesta o seu sentido religioso e de apego aos valores fundamentais, o sentimento de humildade, simplicidade e fraternidade. Esse retorno ao interior de si mesmo e da condição humana voltada aos valores sublimes é um sonho e uma proposta do poeta. “Os momentos de crise suscitam um redobrar de vida nos homens” (Chateaubriand, 1821, p. 43). Em meio à pandemia, a arte poética se torna um modo de lidar com o isolamento, através do qual o fluxo de imagens, sons e palavras subvertem o isolamento no crânio e adentram no território do sonho. Chegará o momento em que as águas e ares recuperaram fluxos e se tornaram mais puros. A tendência natural é pelo equilíbrio, nos mostra o mundo, o ambiente. Os anseios dos nossos fluxos em ficarem mais limpos e desobstruídos: “Sinto a quentura/do punhal/ alourado/das forças/ mais gordas do que eu/cravadas/em memórias/e lembranças de bronze/derretido em fluidos alegóricos mágicos”(Dia XI, p. 17); “Cinzas de circunstâncias/ fumaças de breu/ vozes de serafins atiçam o vinho/ solvido na Divina Química/ onde o vermelho e o preto é branco qual neve” (Dia XIV, p. 20). A poesia confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialecticamente os problemas através do exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza e a percepção da complexidade do mundo e dos seres.

Os textos Quarenpoema buscam transformar esse período adverso em risonho sonho, transfigurar as palavras em imagens, sons e vida, fazendo-as penetrar no âmago de nossas almas, nelas se aninhando para um devir melhor. Nesse tempo insano, em que o mundo foi apanhado de surpresa pelo ataque de um inimigo invisível, e todos fomos obrigados a nos recolher, o poeta foi buscar, no fundo de sua alma, palavras de consolo e de esperança, sabendo que falar de sonho e de esperança não é coisa simples, nem fácil, pois é obra quase exclusiva da poesia. E quando lemos Quarenpoema, concluímos que nem tudo está perdido.

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Referências bibliográficas

Chateaubriand, A. (1821). Itenéraire de Paris a Jerusalém e de Jerusalém a Paris.  Bruxelas.

Jung, C. G. (1991). O espírito na arte e na ciência. (3º ed.). Petrópolis.