O vendedor de insónias

Apeado da cama, numa manhã de céu pardacento, no mesmo instante em que espreguiçava os ossos do seu franzino corpo, Kamatumbo fez sair voz pela sua boca: “Hoje será um grandioso dia!!”. Este conjunto de palavras chegou à cozinha, encontrando os ouvidos da sua esposa, que, não deixando o silêncio que o seguiu ganhar muita idade, gritou:

– Dormiste como uma pedra. No teu telefone, as chamadas não paravam.

Kamatundo não deu valor ao recado da esposa. Com o rosto a transbordar alegria, foi directo ao banho. Enquanto banhava, meteu rapsódia de Semba na boca, para gáudio da esposa, que se intitulava adepta número zero do estilo. O banhista começou com Mukongo, de Carlos Burity; depois Kibwikila, de Bangão; Dyala dya Ongo, de Dom Caetano; Nzala, de Elias dya Kimwezu e, já de toalha verde amarrada à cintura, ao sair, findou sembando Bebucho, de Day Doy.

Meia hora depois, sentados à mesa, a esposa disse-lhe:

− Todos os órgãos de comunicação social ligaram. Queriam detalhes sobre o lançamento.

A resposta de quem lhe fora dirigido o recado fez a esposa meter franzidos no sobrolho. Kamatumbo mandara-lhe enviar mensagens para os órgãos de comunicação, indicando quem seriam as pessoas que deviam cobrir o evento. Só mulheres.

− Mas tu não estás maluco?! Para cobrir um evento literário estás a escolher as pessoas. Já devias agradecer muito por que te ligaram. Não é fácil…

O esposo levou os lábios aos ouvidos da mulher e ciciou-lhe: as ligações demonstram que caíram todos no meu embuste. Eu criei duas mil contas no Facebook. Estas contas falsas reagiram à publicação do lançamento do livro. Isso levou outros milhares de pessoas a imitarem. Houve milhares de partilhas. O Facebook está inundado pelas notícias do lançamento do meu livro. Estou transformado numa estrela literária, mulher.

− Então, tu és uma estrela falsa da literatura angolana! – disse a mulher, rasgando o seu lindo rosto num sonoro sorriso.

− Mas as coisas só funcionam assim, mulher. Vais ver como é que aquilo vai encher. – Kamatumbo reforçou também a gargalhar.

O casal já estava com as nádegas presas nas cadeiras por longo tempo, sempre com a boca a mujimbar sobre a “febre seguidista” que enferma o mundo actual, quando alguém bateu à porta. Aberta, a sala foi invadida por um encantador eflúvio.

− Desculpa, é aqui a casa do doutor Kamatumbo? – Indagou quem batera à porta. Era um jovem de corpo avolumado. Bochechudo e pançudo.

A esposa, espantada pelo título que o gordo jovem colocara antes do nome do seu marido, sem responder, olhou para o doutor que era uma falsa estrela da literatura. Este balançou a cabeça em sinal de que a autorizava a responder positivamente. O jovem entrou com um porta-fato na mão direita.

− Vim a mando do seu confrade Escritor de Muitas Posses, de quem sou motorista pessoal. Ele mandou-me vir trazer este fato para o senhor usar no seu lançamento e pediu-me para o levar à União dos Escritores Angolanos. – Era o jovem depois de se abeirar do Kamatumbo.

No quarto, enquanto a esposa o ajudava a vestir o soberbo fato, que era de cor castanha, Kamatumbo confessou não estar a ver quem era o tal confrade Escritor de Muitas Posses. Mas suspeitava que fosse o pseudónimo literário do seu amigo João Fernando André “Kalunga”, porque era o único que andava com algumas manias de ostentação, sempre cobrindo o corpo com pomposos fatos, inclusive usava relógios dourados e deambulava pelas ruas da cidade de Luanda com uma bicicleta muito cara.

No portão, já sob um céu limpo, Kamatumbo, com um esforço descomunal, dobrou a língua no interior da boca, para que não o traísse ficando de fora. Manteve o rosto mais sereno que pôde. O carro enviado pelo seu confrade era um potente e luxuoso Jeep Toyota SWD4 Diamond, o último lançamento da marca japonesa. O gordinho motorista, para o fazer sentir-se mesmo uma estrela, abriu-lhe a porta. No interior do carro, o luxo era muito maior ainda. Mas Kamatumbo não mais se deu ao trabalho de prender a língua. Se calhar, já estava convencido de que era uma estrela da literatura.       

− Então, não tens Semba num carrão destes? – Indagou Kamatumbo.

Os dedos gordos do motorista ligaram o rádio. A voz do finado Tony do Fumo, que fora do agrupamento musical Os Kiezos, por meio da música “Limbwi”, tomou o comando do interior do carro. Kamatumbo gritou “Acertaste!” e começou a abanar o seu minúsculo corpo. Dançava.

Na União dos Escritores Angolanos, os dois incredularam o rosto. Reinava uma verdadeira sarrafusca. Parecia que havia um comício político, mas dos idos anos oitenta, tempos em que as pessoas ainda morriam de amores pelos políticos. Actualmente, a maioria acha que os políticos são todos uns rapinadores.

A polícia tentava meter ordem na multidão que acorrera ao local que estava apinhado de gente como se fosse um autocarro da TCUL em viagem das 17 horas. Kamatumbo fez-se pávido ao ver o seu confrade Pedro Kamorroto, que tinha a missão de apresentar a obra, entre a multidão.

O bulício cresceu quando as pessoas reconheceram a estrela da literatura no interior do luxuoso carro. Cercaram-no, tornando-lhe ínvio o caminho. Os telemóveis deram início a uma de suas funções secundárias. Todos filmavam a estrela da literatura. Este sorria e acenava. Pedro Kamorroto conseguiu estar à frente. A estrela apenas lhe abriu os braços, em sinal de impotência.

A polícia pediu reforços. O carro passou. Ao descer, Kamatumbo foi recebido com microfones na boca. Eram todas as jornalistas que pedira: Sónia António da Rádio Cazenga; Artemísia Mukuta da Rádio Luanda; Sara Kambinga da Rádio Tocoísta; Dinamene Cruz da TPA e Edna Cauxeiro do Jornal de Angola.

Elas fizeram perguntas em uníssono. Kamatumbo, não entendendo a babel, ripostou que falaria no fim do evento. À entrada do hall, as mesas em que os livros deviam estar expostos estavam vazias. O atendedor, vendo que a estrela estava alheada, disse.

− Os mil livros acabaram em menos de uma hora. Aquelas pessoas lá fora estão a fazer confusão por este facto. Não conseguiram comprar. Aqui já passou grandes porradas, mas ninguém está a ir embora.

No interior da sala, de tão enxameado que estava o espaço, à laia de serpente, Kamatumbo ziguezagueou o seu fino corpo entre as pessoas, até que chegou à mesa do presidium, na qual já estavam os escritores Pombal Maria e Ernesto Daniel, sendo o primeiro representante da União de Escritores Angolanos e o segundo o MC do evento. O soberbo fato castanho ficara todo amarrotado, deixando triste o dono do corpo que cobria.

Assim que se sentou, do lado direito da sala nasceram apupos. Lançado para lá o seu olhar, Kamatumbo, que já estava com pose de estrela, reconheceu os seus parentes. Sorriu. Aqueles, vendo-o alegre, fizeram nascer palmas, na boca, pariram música:

“Nós de Inácio somos abençoados. Aleluia!!”

“Etu Twanaxo twazediwa!!”

“Nzambi atuzola kyavulu!!!”    

 Kamatumbo levantou-se sem o riso na cara. Levou o microfone à boca e disse:

− Parem! Não quero estas músicas que promovem o tribalismo. Senão, daqui a pouco, vão fazer o que fez a nossa tia Maria Muxima Yaditadi quando, interpelada por um polícia, se negou a mostrar os seus documentos, porque ser natural de Catete, a terra, segundo disse, onde começou o mundo, devido à má interpretação que faz do que aprendeu na igreja sobre a teofania de Simão Toco naquela terra, a 17 de Abril de 1935.

Os seus familiares sentaram-se calados e envergonhados. O silêncio ocupou a sala. Já sentado, Kamatumbo correu-o gritando a plenos pulmões o nome do Pedro Kamorroto. A polícia foi mobilizada. Escassos minutos depois, o apresentador chegou suado, sujo e com a camisa vermelha que vestia completamente amarrotada. Ernesto Daniel, o Mestre de Cerimónia, depois de dar início ao evento, chamou o apresentador ao púlpito.

− Muito boa tarde! Peço perdão ao confrade Kamatumbo e a todos os presentes, é que não esperava esta situação, que acaba por ser histórica. Nunca tivemos um lançamento de uma obra literária com tanta gente. Vão desculpar-me, porque a minha mochila desapareceu na confusão e nela estava o meu texto de apresentação da obra. – Era Pedro Kamorroto, o apresentador da obra. A seguir, levou o seu lenço-de-bolso ao rosto. O seu suor era casmurro, teimava em banhar-lhe o rosto.

A sala não mugiu, nem tugiu. O Mestre de Cerimónia tomou outra vez o púlpito e disse que não restava outra coisa, senão passar para a sessão de autógrafos. Antes de a sala reagir, Kamatumbo meteu sua voz nas colunas:

− Bem, antes de iniciarmos, em jeito de agradecimento pela vossa presença e pelo facto de a obra trazer uma estória difícil de ser decifrada, gostava de vos dizer que esta novela, “Os Cães e os Envenenadores”, é resultado de imagens que surgiram no tecto do meu quarto, numa madrugada em que estive insone. Nas imagens, surgiram dois cães, a Laica e o Lux. Estes são uns grandes fofoqueiros e inventaram conversas de que os homens, um dia, passarão a envenenar-se por meio das suas próprias bocas, pois conservam muito veneno nos corpos.

Mal terminara, novo bulício tomou conta da sala. Livros começaram a voar por todos os lados. Todas as pessoas decidiram ir embora. Incluindo os parentes do autor da obra, que também abandonaram os livros. Ninguém queria mais perder um segundo sequer naquele espaço. Admirado, o Mestre de Cerimónia gritou:

− O que se passa?

Um dos homens, sem sequer pôr travão na presteza que comandava os seus pés, respondeu:

− Estamos a ir porque este “kaescritor” não passa de um vendedor de insónias. Ninguém vai perder tempo a ler esta estória sobre dois cães fofoqueiros!!!

Os homens do presidium entreolharam-se admirados. Passado um minuto, inundaram a sala prenhe de livros com uma súbita gargalhada. O sorriso do Pedro Kamorroto não demorou a afogar-se. O seu teimoso suor não aceitou ficar de fora da grande festa de lançamento do livro de estreia da estrela falsa da literatura.