Emprestar a voz, por sinal crítica, a uma obra premiada é ser iconoclasta, no mínimo assumir terrorismo intelectual, se quisermos “contemporanizar” o discurso.
Porém, parece justificar-se pelo subjectivismo que qualquer crítica encerra: um olhar singular revelador de um gosto pessoal e estético próprio, alicerçada numa experiência também pessoal literária e de vida.
Mas o que vem a ser esta actividade de crítica literária? Um crítico literário não procura defeitos na obra, não inventa outra sobre a sugerida, a crítica visa apenas explicar como está estruturada a obra e seu enquadramento nos marcos das correntes e géneros literários. Quando muito, a crítica ou recensão literária procura interpretar a obra: dirigir/esclarecer o leitor sobre a semântica do texto e despertar nele o gosto pela obra. Portanto, a crítica deve ser entendida como leitura técnica, demonstrativa de múltiplo saber sobre a matéria na especialidade e apoiada por vasta e profunda cultura geral, atesta o crítico literário Jorge Macedo.
Sobre a construção da Narrativa:
Estrutura externa: o livro está composto por textos em prosa (no aspecto formal ou exterior é escrita em parágrafos-linhas contínuas e não em verso), é uma prosa pura e não versificada, não poética.
Género literário: dos vários géneros narrativos existentes, Mahamba pertence ao Conto: narrativa de pouca extensão, de um número reduzido de personagens, de um tempo restrito e de uma acção muito simples (Guerra et ali 2001:20). É um conto literário diferente do popular porque é reenviado para a sua origem, o autor, chamado também, conto de autor.
Na perspectiva classificatória de António Fonseca apud Carlos Esterman (2008:64-65), os contos podem ser: Contos do fantástico e do maravilho cujos protagonistas são seres humanos à mistura com monstros antropófagos, seres inanimados, homens metamorfoseados por poderes ocultos, espíritos, divindades e afins. Nestes contos, o enredo contém acontecimentos ou factos extraordinários que a razão humana não consegue explicar, remetendo a explicações para o plano de poderes ocultos e para os sobrenaturais. O objectivo destes contos é infundir respeito pelos princípios metafísicos ou de espiritualidade que subjazem na relação Homem-Natureza-Entidades Superiores. Infundem medo quanto ao desrespeito pela vida em sociedade. São exemplos disso os primeiros contos do livro e paradigmático, “O quarto da avó”. E contos sociais que fazem parte do entretenimento cujo objectivo é transmitirem um exemplo ou uma lição. Os seus personagens são seres humanos, as vezes misturados com animais no plano secundário. Os factos são tidos ou narrados como verdadeiramente acontecidos num tempo e lugar determinados e contêm alguns episódios magísticos ligados aos seres humanos com poderes especiais e ocultos. O exemplo melhor conseguido desta categoria é o conto Mahamba.
Na categoria de contos do fantástico e do maravilhoso se enquadram os contos: Cabanda, o aprendiz; Uanga; O quarto da avó; Bebeca. Na categoria de contos socias estão: Mulowa, Muloji, Menino Homem, Lemba e Mahamba.
Estrutura interna: o livro possui 9 contos em que os quatros primeiros são do fantástico e do maravilhoso e cinco são contos sociais cuja diegese convoca para uma narrativa organizada por encadeamento, onde se vislumbra uma sequência linear dos acontecimentos: introdução, desenvolvimento e conclusão. O narrador, ora longe dos acontecimentos, heterodiegético (ex,. o conto Uanga, pág 21) ora narrando na primeira pessoa, autodiegético (ex. o conto Menino-Homem, pág 48, e O quarto da avó pág 28), é essencialmente um narrador objectivo e omnisciente. O espaço físico varia de rural (ex., Molowa) a urbano (ex., Muhamba), contudo, o espaço social não muda, situa-se na classe pobre, chegando mesmo a paupérrima, caso da família de Africano e Teteia “ … Lá em casa, às vezes, jantar sim, e as vezes, jantar não”, pág 24. No mundo discursivo predomina a narração em detrimento do diálogo, como é canonizado o género conto. O livro está escrito num português literário e imaculado com frases bem conseguidas como: “ A morte é mais urgente que a vida, é como um cheiro impregnado na pele dos aflitos”, Mahamba, pág 22; “ Nos corredores da vida, choro não é grito, é lágrima que verte pelas dores e saudades que ficam”, Mahamba, pág 27.
Temáticas centrais: Mahamba remete-nos, numa tradução livre da palavra, a problemas ou makas que se centram em Uanga (feitiço), de acordo a organização do livro. Uanga que se aprende em “Cabanda, o aprendiz” e que com ele se faz o mal; no conto“Uanga” onde a menina Teteia é enfeitiçada a partir da comida, ou no conto “Bebeca” onde a pessoa com o mesmo nome é enfeitiçada pelo avô para ter relações com aquele nos sonhos; o mesmo Uanga que deve ser bem guardado pois por muitos é procurado sorrateiramente, quando em público é desdenhado (conto O quarto da avó); Uanga do Africano, ainda criança, acusado de feiticeiro; Uanga, a promessa de riqueza para o pai de Cento e Quarenta e Sete que nunca chegou a conhecer. Entretanto, o autor, algumas vezes alterna o tema feitiço abordando o tema da violação nos casos de Bebeca e Lemba.
Deduz-se que o foco temático do livro é o drama vivido por crianças ora acusadas de feitiçaria (Cudijimbi e Africano), ora violadas pelos adultos. É uma narrativa de desilusão e denúncia contra os maus tractos de crianças, essencialmente, aquelas acusadas de feitiçaria.
Estilo: escrita em prosa literária, do género conto de autor, Mahamba permite-nos saborear uma leitura fluída construída sobre os traços distintivos da nossa angolanidade- presença de antropónimos, cenários e vivências do nosso cotidiano (ex,.praça dos kibalas, Mahamba, pág 59). As estórias pertencentes ao conto social e ao do fantástico e maravilhoso cumprem seus propósitos: conservar e preservar os valores identitários da comunidade, transmitir um exemplo ou uma lição, ou a reverência ao sagrado – não cristão.
Portanto, a adjectivação feita anteriormente não sonega a necessidade de um aprofundamento estético-compositivo relativo à densidade psicológica dos contos, a sua engenhosidade, com desfecho (desenlace) espectacular, inesperado, surpreendente, curioso, de suspense que suspende a respiração do leitor e que o intriga e o convoca a um mergulho na História do nosso povo. (realça-se que o conto Bebeca atinge esse patamar).
Referência bibliográficas
Activa
QUITECULO, Oliver, Mahamba, contos,1ªedição, Colecção artes e letras, INIC, Luanda, 2018
Passiva
FONSECA, António, Conto de Antologia – reflexões, contos e provérbios. INALD, Luanda, 2008.
GUERRA, João António Fonseca, VIERA, José Augusto da Silva, Língua Portuguesa, 9º Ano Porto Editora, s.d.
MACEDO, Jorge, Como Escrever Literatura- núcleo de estudos literários, 1ª edição, INIC, Luanda, 2010
REIS, Carlos, O Conhecimento da Literatura, Introdução aos Estudos Literários, Almedina, Coimbra, 1985.