O discurso da angolanidade literária: entre a ciência da força e a força da ciência

As tendências da pretensa construção de uma identidade literária fizeram corpo no romantismo a partir do século XVIII. O intuito patriótico e o tema da identificação nacional, e tudo que nele estava implicado, encontram no romantismo o seu assento. O encontro das aspirações de atender o propósito histórico da construção das diversas identidades nacionais concomitantemente com a formação das respectivas literaturas nacionais estabelece a dupla orientação que abre caminho para a conexão identidade e literatura. De maneira geral, o romantismo foi o grande tributário do nacionalismo, embora nem todas as suas manifestações se integrassem nele. Em Angola, é no século XX (década de 50) com a geração mensagem, no âmbito das lutas independentistas e da formação da consciência colectiva, que se dá o parto do conceito angolanidade literária. A problemática sobre a angolanidade literária voltou a aquecer o nosso banquete literário com dois artigos opostos publicados no Jornal Cultura, nas edições nº 182 e 183 (ano 2019): Crítica da angolanidade literária, de Hélder Simbad; O conceito de angolanidade e os oponentes em tirocínio argumentativo, de Luís Kandjimbu. É nossa perspectiva discutir os presentes discursos, visto que a problemática sobre a angolanidade literária ainda é actual e actuante, assim como divide o nosso universo literário.

O conceito de angolanidade literária está atrelado a quê?

Existe algo no nosso gene que diz sermos angolanos?

Teoricamente, a identidade não está atrelada a literatura, pois o significado fundamental de nação, mesmo o mais difundido na literatura, é político. Com efeito, há nessa arte uma inegável aspiração nacional ou identitária, o que explica, inicialmente, o vínculo do significado político com o uso estético da linguagem. “Há na literatura um instinto de nacionalidade […]. Se houvesse essa estabilização em uma identidade definitiva, não teríamos nada além de uma proposição tautológica nós = nós” (Assis, 1959, p. 28). Para Kandjimbu, “o conceito em análise apresenta uma grande robustez epistémica, podendo ser entendido como uma arquitopia cujo significado aponta para uma semiótica de posicionalidade e do lugar que emanam os objectos da reflexão. Neste caso, trata-se dos lugares legitimadores da produção dos conhecimentos, a partir dos quais se fala e se lê sobre a realidade angolana. […] O esforço de conceptualização intensifica-se a partir da década de 60 do século XX, […]”. Há neste discurso importantes defeitos, ou seja, sofre de contemplatividade, antropologismo, de metafísica e sobretudo de historicismo, pois, qualquer análise conceptual deve conjugar teoria a prática. Não demonstrou nenhum traço definitório do que é a angolanidade. Kandjimbu esquece de que o problema de qualquer construção identitária é as margens que ela produz, ou seja, não é a nação que deve colocar limites na literatura, é também na universalidade que reside o belo artístico. Nesta linha, Simbad parece-nos mais coerente quando afirma que “Os defensores da angolanidade literária, vista como uma gramática rígida, são amantes do realismo, do neorealismo e do realismo animista […]. Um escritor pode criar um universo diegético completamente afastado dessa realidade cultural e ainda assim ser enquadrado no sistema literário. […] A literatura é uma arte onde a «liberdade criacionista» é componente ontológica. A angolanidade, vista assim, reduz as possibilidades de criação. […] A angolanidade […] configurar-se-ia, nos dias de hoje, como uma gramática de criação para os escritores medíocres. O crítico deita por terra a teoria da angolanidade literária, considerando que este discurso professado por ilustres figuras do nosso jardim literário tem carácter étnico-literário, a-cientifíco, subjundo-a numa cadeia panfletária. Comungamos que a literatura, tanto na sua estrutura interna e externa, não casa com fronteiras artificiais e menos ainda nos padrões definidores de qualquer sistema.  

Aceitámos que na literatura possa existir aquilo que Assis chamou de instinto nacional, que leva a aplaudir, principalmente, as obras que trazem os referentes nacionais, mas é insensato balizar a arte literária numa concepção ontológica fixa e permanentemente atrelada em carris identitário; a identidade nacional não tem existência objectiva, e a ideia de progresso suplanta a concepção de uma tradição fundamentada no passado como a da angolanidade literária. A forma polifônica e dialógica, por exemplo, do romance Barroco Tropical, de Agualusa é uma narrativa que despoja a essência monológica da angolanidade literária. Mesmo assim é literatura angolana. A teoria da literatura, muitas vezes, apresenta o conceito das invariantes axiológicas, isto é, da existência de valores fundamentais que guiam os homens ou que lhes sirvam de referência no seu quotidiano e da dualidade significado-significante em que encontramos certos elementos fónicos ou gráficos que apresentam um condão nacional, como “Umbi umbiˮ, “Monagambéˮ […]. Estes possuem a força de invariantes locais, o que não pode ser visto como marcas da nossa literatura. Mesmo apresentando ideias locais, os signos presentes nos versos podem ser universais. Ao analisarmos o chamado “pensamento crítico angolanoˮ do século XX, período de amadurecimento da intelectualidade nacional, veremos que nossos pensadores foram, antes de tudo, obrigados a assumir uma grande quantidade de funções e de tarefas, desviando-se, sobretudo na primeira metade do século XX, da especialização científica ou filosófica que, há muito, já dava o tom no pensamento europeu. Cabe-nos entender as consequências desse estado de coisas. Assim, mesmo quando quisermos falar deste pensamento, encontramo-lo dentro de um sistema multifacetado, em que a literatura acabava sendo caudatária de toda sorte de reflexões, assumindo uma polivalência de concepções.

Pensamos que um escritor, antes de tudo, possui um certo sentimento que o torna homem do seu tempo e do seu país, ainda que trate de assuntos fora do seu espaço geográfico. Afirmar a angolanidade no contexto contemporâneo equivale a afirmar por identificação ou mapeamento uma cultura que represente o mosaico nacional, o que é impossível dada a nossa multiculturalidade e a hibridização do universo cultural. Se é angolano mesmo não falando qualquer língua nativa, como se é angolano mesmo gostando apenas de comer da culinária brasileira? Como diz Simbad, “A ciência não é democrática para permitir o surgimento de «ciências étnicas» ”.   

A questão sobre a angolanidade literária é um pseudoproblema, é mais exclusiva do que inclusiva, manifesta sintomas de fraqueza ou de oscilação do sistema literário. Toda a dogmatização literária constitui entrave ao engrandecimento da literatura nacional. Ciência não precisa de outorga, ciência é ciência.  

Referências bibliográficas

Assis, M. (1959). Crítica Literária. São Paulo.

Kandjimbu, L. (11 a 24 de Março, 2019, ed. 183). O conceito de angolanidade e os oponentes em tirocínio argumentativo. Jornal Cultura, pp. 7-8. Simbad, H. (31 de Maio a 11 de Junho, 2019, ed. 182). Crítica da angolanidade literária. Jornal Cultura, pp. 8-9.